quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

A Síndrome de Burnout


A Síndrome de Desistência do Educador e a necessidade do reencantamento nos limites do fazer pedagógico

Prof. Jéferson Dantas

1. Considerações Iniciais:


A priori, poderíamos dizer que a Síndrome de Desistência do educador ou Síndrome de Burnout é um sintoma bastante presente na vida de qualquer trabalhador em educação. Porém, nunca a sistematização e o aprofundamento desta síndrome foram tão importantes para compreendermos o porquê de este profissional estar perdendo o seu vigor no ambiente escolar, ou melhor, o porquê de estar tão desvitalizado e sem ânimo para continuar acreditando em seu ofício.


Primeiramente, deve-se perceber que esta síndrome é multidimensional, ou seja, carrega consigo pelo menos três elementos essenciais: A) Despersonalização; B) Exaustão emocional; C) Falta de envolvimento pessoal no trabalho. Logo, estes três elementos revelam uma situação em que os educadores percebem esgotada a sua energia e os “recursos emocionais próprios”, além de desenvolverem atitudes negativas e cínicas em relação aos educandos. O endurecimento afetivo dos educadores torna as relações no ambiente escolar coisificadas, afetando sua prática pedagógica cotidiana (CODO, 1999, p.238).


É bem verdade que há variados ingredientes estruturais coadunados que reforçam esta síndrome, que vão dos salários indignos até a ausência de suporte sócio-afetivo na Escola. Os problemas familiares e econômicos, também podem ser apontados como obstáculos na eficiência do(a) educador(a).


Os educadores, embora tenham controle sobre o seu trabalho (todas as etapas do processo de produção do conhecimento), sofrem psiquicamente quando não conseguem atingir os seus objetivos pedagógicos. Este sofrimento quando não encontra um restauro imediato, tende a internalizar no educador uma sensação constante de impotência diante das demandas estruturais e conjunturais em seu ambiente de trabalho. Não há alternativas mágicas para superar a síndrome, nem tampouco uma solução clínica que possa resolver os desequilíbrios somatizados pelo corpo ao longo de um ano letivo. Entretanto, podemos apontar alguns caminhos que possam promover a amenização da síndrome ou condicioná-la de uma forma que não atinja o estágio da estagnação total do (a) profissional.

2. Troca de Experiências Pedagógicas e culminância de projetos coletivos

Entendendo que a dimensão pedagógica e o ofício do educador como um todo, necessita ser constantemente repensado no ambiente de cada escola, assim como a identificação dos principais obstáculos no processo ensino-aprendizagem, ressaltamos a relevância de intercambiarmos práticas e saberes coletivos. Nós, educadores, de maneira geral, somos ruins de marketing. Não sabemos fazer propaganda de nossas aulas. Acreditamos na maioria das vezes que as tarefas que propomos aos nossos alunos são simplistas e desinteressantes. Ledo engano. Atualmente, as relações humanas encontram-se cada vez mais pulverizadas. Há pouco tempo para o diálogo, há pouco tempo para o sublime e a contemplação. Como nos ensina Paulo FREIRE, precisamos fugir do discurso fatalista dos governos neoliberais e acreditar numa força capaz de arregimentar uma “nova rebeldia (...) a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana” (2003 p. 129). Dizer isso é radicalizar o espírito dos educadores. Mostrar-lhes que os caminhos são áridos e depende de toda uma organização pessoal e material.
Os saberes e as práticas destes educadores quando culminam em projetos coletivos, desencadeiam uma catarse fantástica. O registro destas experiências pedagógicas, agrupadas em áreas disciplinares, é que dão visibilidade a estas práticas, seja através de oficinas ou seminários, possibilitando uma intervenção mais sistemática por parte dos educadores. Urge, pois, romper os grilhões que condicionam o saber escolarizado a um saber menor, sem validade científica.

2.1. Espaço de trabalho também é espaço de criação

Atender clientelas tão díspares, com perfis sociais tão diversificados exige dos trabalhadores em educação uma formação que vai além daquela recebida nos bancos de uma universidade (formação inicial). A formação continuada possibilita ao educador estar atento ao seu tempo, ser protagonista e ao mesmo tempo coadjuvante no momento das decisões coletivas, desenvolvendo capacidades para “novas formas de utilização dos saberes, com o rompimento das barreiras na divisão das áreas estritas de conhecimento e trabalho” (GATI, 1997, p. 95).


É natural que às novas exigências das transformações do mundo do trabalho, que coisificam as relações humanas a patamares semelhantes às da 1a. Revolução Industrial, os trabalhadores em educação sejam chamados a uma imensa responsabilidade: reduzir as fronteiras que separam os alfabetizados plenos dos alfabetizados funcionais. A leitura do mundo está exigindo muito mais do que decodificações precárias de textos impressos, de informações fragmentadas retiradas de um site da internet ou de uma manchete de um semanário. Soma-se a isto, a enorme leva dos analfabetos digitais, excluídos por não poderem acompanhar o avanço incessante da microeletrônica.


Diante disso, os educadores não podem se isolar. A criação é um processo muito rico, embutido nos planejamentos coletivos e em consonância com o PPP (Projeto Político Pedagógico) da unidade escolar. Um ambiente de trabalho criativo é um ambiente dotado de possibilidades pedagógicas. Mas, acima de tudo, é um ambiente onde os trabalhadores em educação se sentem à vontade para trocar idéias, onde impera a construção do conhecimento e a ludicidade necessárias para se promover um locus sadio de interatividade intelectual.

2.2. Trabalhadores em educação: domínio do conhecimento científico

Ter domínio de sua área de conhecimento parece ser algo óbvio quando nos referimos aos educadores. No entanto, não é o que tem ocorrido ultimamente. O domínio do território epistemológico por parte do educador é que o torna um diferencial na análise de um fenômeno físico-químico ou de um fenômeno social. Porém, seja pela defasagem da formação inicial e a ausência de uma formação continuada a contento, os educadores estão em grande medida aquém das necessidades exigidas pelo mercado típico de trabalho.


Logo, a postura profissional dos trabalhadores em educação necessita, efetivamente, ser de intervenção pedagógica constante. O enfrentamento, as atitudes afirmativas tomadas nos momentos de conflito, fazem com que os educadores se tornem peças fundamentais na construção do projeto pedagógico da Escola. Um educador feliz, apaixonado, que materializa suas utopias, consegue contagiar seus alunos. Isto só é possível quando a gestão na unidade escolar é democrática, quando todos os educadores, educandos, especialistas e funcionários agem de maneira uníssona, pois sabem que as instâncias de deliberação coletiva (Conselho Deliberativo, APP e Grêmio Estudantil) possuem legitimidade. Uma gestão autoritária, desplugada da realidade da comunidade escolar, tende a reforçar exclusões e o isolamento de seus sujeitos partícipes.


Tendo em mãos um planejamento estratégico, que possa diagnosticar com maior precisão as prioridades, metas e ações transformadoras no ambiente escolar, conduz os trabalhadores em educação a um processo de superação de práticas pedagógicas viciadas e desarticuladas com o PPP da unidade escolar. Entendemos que o desafio das gestões democráticas é o de motivar todos os seus profissionais num projeto coletivo sólido, que possa servir de referência para todos os educadores compromissados com o seu ofício social. As lideranças agregadoras devem ser identificadas no interior do universo escolar, objetivando a protagonização destes sujeitos potencialmente criativos em circunstâncias de desmobilização grupal.

3. Considerações Finais

Não podemos ser simplistas ou ingênuos a ponto de acreditar que o empenho dos educadores resolverá todas as demandas de uma Escola. Evidente que os educadores são os agentes diretos pelo maior ou menor avanço do processo ensino-aprendizagem de uma classe de educandos. Mas, o que fazer quando estes profissionais deixam de ter compromisso com a Escola? Quando começam a se ausentar sistematicamente e apresentar atestados médicos freqüentes? Quando sabotam os projetos coletivos e se posicionam como lideranças desagregadoras? Quando se orgulham em menosprezar a equipe pedagógica, acreditando que estão sempre certos e que só eles – professores- trabalham na Escola?


Os educadores sofrem, porque estão no atual momento histórico, sentindo-se desamparados. Desamparados pelo Estado, que não investe na sua formação continuada e não consegue estabelecer uma política salarial mais equânime; sofre, porque não é atendido pela unidade escolar no que tange aos recursos necessários para favorecer o processo ensino-aprendizagem; sofre, porque acredita que perdeu tempo no Magistério, porque viu seus ‘amigos’ se darem bem na vida, adquirindo bens materiais impensáveis para o seu padrão aquisitivo.


A Síndrome de Burnout, neste sentido, só poderá ser combatida de maneira orgânica. Atacar seus pontos fortes (despersonalização, exaustão emocional e falta de comprometimento) exigirá uma reorganização política da classe docente e um sentimento de pertença ao ambiente escolar.
Enfim, no epicentro de todos estes tensionamentos, a única saída para amenizar a síndrome, é compreender que a insatisfação do trabalho docente não pode ser desconectada de todas as demais instâncias deliberativas da Escola e das políticas públicas implantadas até o momento. O percurso é sinuoso, repleto de percalços e resistências. Mas pode ser menos doloroso psiquicamente se o trabalhador em educação puder ter momentos de discussão na escola, onde suas angústias possam ser canalizadas a partir de todo um dinamismo dialético histórico. A desistência sistemática dos professores, infelizmente, só agravará o quadro já caótico do ensino público no país.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CODO, Wanderley (Coordenador) Educação: carinho e trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes/ Brasília: CNTE: UnB: Laboratório de Psicologia do Trabalho, 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 26 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

GATTI, Bernardete Angelina. Formação de Professores e carreira: problemas e movimentos de renovação. Campinas, SP: Autores Associados, 1997.

VIEIRA, Sofia Lerche (Org.). Gestão da Escola: desafios a enfrentar. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 2002.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Cinema Político


O cinema político no Brasil

Jéferson Dantas



O filme de Sergio Rezende, Zuzu Angel (2006), consegue nos despertar de certa sonambulia em tempos de despolitização, violência generalizada e ausência de solidariedade. Com extrema sensibilidade, Rezende e toda a equipe técnica de produção, levam-nos aos subterrâneos da repressão militar no Brasil durante a década de 1970. Amargas reminiscências de um período histórico tão presente e assustadoramente brutal. Arrogância e poder sem limites das Forças Armadas, com seus torturadores de plantão e práticas de suspeição em todos os setores sociais. Imprensa amordaçada, artistas exilados, estudantes presos e espancados. Tudo com a conivência do Tio Sam, o ‘grande irmão’ da América.

Rezende é um dos poucos cineastas brasileiros comprometidos com o chamado ‘cinema político’ (talvez a expressão ‘cinema engajado’, não seja a mais apropriada). Remexer as feridas de uma ditadura que acabou ontem não é tarefa simples. Quantos pais tiveram seus filhos presos, torturados e assassinados pela repressão e nunca puderam enterrá-los? E, os que sobreviveram aos eletrochoques, paus-de-arara e outras ‘tecnologias’ de tortura, convivem com os fantasmas dos torturadores, inevitavelmente. Num Estado de exceção, setores conservadores da igreja católica e do empresariado nacional que engordou seus bolsos à custa das benesses dos anos de chumbo, tudo era permitido em nome da segurança nacional. A humilhação, a despersonalização de homens e mulheres envolvidos com a militância política, era tratada de forma meticulosa pelo aparato repressor; era fundamental ainda que os(as) torturados(as) confessassem até o que não sabiam, que chegassem ao limite de sua sanidade física e mental.

Zuzu Angel foi um exemplo de luta pelos direitos humanos em nosso país. Uma mulher que criou três filhos numa época em que ser ‘desquitada’ era sinônimo de ‘mulher à-toa’; que teve um filho assassinado pela repressão militar e foi até às últimas conseqüências para descobrir o seu paradeiro; que enfrentou os júris militares cênicos até ser assassinada em 1976. Talvez para boa parte da classe média brasileira, os tempos auriverdes sejam lembrados como de respeito à pátria, de sensação de segurança e combate aos subversivos. Para mulheres e mães como Zuzu Angel – e aqui uma referência às mães da Praça de Maio na Argentina –, o gosto amargo da ditadura não lhe tirou apenas um filho, violentamente. Antes, porém, deu-lhe uma consciência política e um poder de mobilização que muitos não tiveram coragem de fazer naquela época. Como até hoje não fazem.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

O professor terceirizado



Jéferson Dantas


Não bastasse a precariedade das condições de trabalho com que os trabalhadores em educação se deparam em todos os níveis de ensino, surge uma nova modalidade de expropriação do trabalho intelectual desses profissionais: o professor terceirizado. A polêmica foi assunto da Folha de S.Paulo no ano passado e reacendeu uma velha discussão: até quando os educadores brasileiros continuarão exercendo seu trabalho sem qualquer dignidade e respeito ao seu ofício? Só no estado de São Paulo são 15 mil educadores do setor particular que estão nessa condição aviltante. O modelo de contratação dos professores é idêntico dos funcionários de limpeza e segurança, ou seja, contratos temporários e dependentes de uma demanda focalizada. A terceirização é realizada através de uma cooperativa e as instituições contratantes ficam livres de encargos trabalhistas, tais como FGTS, férias e décimos terceiros salários. A ‘economia’ na folha de pagamento chega até 50%. Um grande negócio à custa de uma mão-de-obra qualificada, porém, precarizada.



O impacto pedagógico também é imenso, pois os professores não recebem qualquer benefício caso sejam demitidos ou tenham de faltar por motivo de doença. A elevada rotatividade também é comum, pois os professores não criam vínculos com aquele espaço educativo. O que ocorre na prática é uma deturpação do cooperativismo, pois apenas uma parte – o dono da instituição de ensino – é que sai ganhando. Não há divisão dos lucros. Em grande medida, esta foi a saída nada honrosa dos donos de escolas de São Paulo, realidade também presente em várias partes do país, para amenizar a diminuição das matrículas tanto na educação básica como no ensino superior.



Sendo assim, com o setor educacional privado em crise as políticas públicas educacionais precisam promover a valorização dos educadores, tendo em vista que já há no Brasil vagas ociosas no ensino médio devido aos baixos salários. A qualificação dos educadores nas diferentes e variadas licenciaturas associado a um piso salarial nacional digno, reduziria bastante a procura por instituições particulares que exploram a mão-de-obra docente, ferindo inclusive princípios trabalhistas. Reforçar qualitativamente a educação básica pública é apostar num projeto de formação em longo prazo, o que trará, sem dúvida alguma, mudanças significativas em diversos setores produtivos da sociedade brasileira.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Ofício de historiador


Passado-Presente-Passado

Jéferson Dantas



Se não podemos exigir do passado o que ele não foi, tampouco podemos exercer destemperadamente, a futurologia. O “se” para os historiadores de ofício não existe. Entretanto, foi lá no passado que nos constituímos. Ele – o passado – é a substância do presente, onde lidamos com situações-problema não totalmente resolvidas e que nos servem como subsídios para a tomada de decisões. Na dimensão passado-presente-passado a dialética funciona como interlocutora do vivido e do que precisa ser ainda construído, portanto, exercício permanente de elaboração e reelaboração de aprendizagens significativas.

O passado não silencia e nem condena. Promove, porém, diferentes análises interpretativas do que ficou consagrado em documentos oficiais, livros, cartografias, atas, iconografias ou qualquer outro registro histórico. É justamente aí que reside a importância do passado: não repisarmos as mesmas ações equivocadas ou naturalizarmos a idéia de que tudo já foi dito ou pensado. Para o senso comum a ‘história sempre se repete’; para o pensamento histórico os acontecimentos nunca se repetem da mesma maneira, pois sendo frutos das ações humanas eles nunca podem ser recuperados tal como uma imagem estática, sem ruídos ou rupturas. A dinâmica do ‘pensar a história’ é resultado de indagações que fazemos ao presente, num processo dialógico coerente e constante com o passado.

Nesta direção, ainda que não seja possível recuperarmos o passado tal como ele foi - como ansiavam os positivistas -, podemos dar novos sentidos ao passado, vislumbrar nuanças ofuscadas por julgamentos precipitados. Recontar determinados recortes históricos situados em diferentes e variadas dimensões espaciais/temporais, exige dos historiadores mais do que uma colagem dos fatos; exige, sobretudo, uma mediação permanente, que nunca se esgota ou esbarra na primeira dificuldade pela ausência de fontes. Levando essa aprendizagem para a nossa experiência social mais concreta ou objetiva, o passado tem muito a nos ensinar. O passado é o nosso inventário material-afetivo, refundando metas e novas respostas para indagações supostamente insolúveis. Assim, para problemas semelhantes posicionados no presente, não podemos dar a mesma resposta insuficiente do passado, pois nossa memória social ou a nossa experiência coletiva já não é a mesma; ganhou contornos mais sofisticados e exigentes. Logo, tal como nos ensinou o poeta gaúcho Mário Quintana, ‘o passado não reconhece seu lugar: está sempre presente’.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Na voz de Bethânia, o texto de Pessoa...



Conta a lenda que dormia uma Princesa Encantada a quem só despertaria um Infante, que viria de além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, vencer o mal e o bem, antes que, já libertado, deixasse o caminho errado por o que à Princesa vem. A Princesa adormecida se espera, dormindo espera, sonha em morte a sua vida, e orna-lhe a fronte esquecida, verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, sem saber que intuito tem, rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado, ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino. Ela dormindo encantada, ele buscando-a sem tino pelo processo divino que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro tudo pela estrada afora, e falso, ele vem seguro, e vencendo estrada e muro, chega onde em sonho ela mora. E, inda tonto do que houvera, à cabeça, em maresia, ergue a mão, e encontra a hera, e vê que ele mesmo era a Princesa que dormia.

(Eros e Psiquê - Fernando Pessoa)

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Poesia grega


A importância histórica na obra de Hesíodo

Jéferson Dantas


A poética grega é um dos grandes mananciais da literatura ocidental. Nela se fundem ou se ressignificam os elementos estudados por poetas das gerações posteriores, ou seja, escritores dos períodos medieval, moderno e contemporâneo. Os temas da poesia grega vão da Epopéia à Lírica e desta última para a Alexandrina, já no período helênico. Um dos grandes nomes da poesia grega, sem dúvida, foi Hesíodo.

Acredita-se que Hesíodo nasceu na Beócia, em Ascra, deixando como legado duas importantes obras para a humanidade: Teogonia e os Trabalhos e os Dias. É possível observar na escrita de Hesíodo um estilo semelhante ao de Homero, embora de temáticas opostas. Hesíodo é o poeta do período arcaico grego, época de intensas turbulências no meio agrário. Se, por um lado, Hesíodo se afasta da temática social descompromissada de Homero, por outro ele vai empregar a mesma métrica e, praticamente, o mesmo vocabulário de Homero em suas narrativas. Supõe-se que 80% do vocabulário utilizado por Hesíodo sejam comuns àquelas utilizadas por Homero na Ilíada e na Odisséia.

Além disso, fica patente nas obras de Hesíodo o caráter didático. Na Teogonia ele faz uma explanação do universo a partir das divindades mitológicas. Metaforicamente, o poeta quer nos contar a origem do universo, servindo-se para tanto destas divindades perenes e austeras. No interior daquele contexto histórico (século 8 a.C., aproximadamente), Hesíodo nos traz com a pujança de sua poesia a manifestação de uma época de lutas entre grandes latifundiários e a população expropriada de qualquer espécie de privilégio. Cabe ressaltar que os desprivilegiados não são apenas os camponeses, mas todos os pastores e pequenos artesãos que começam a formar uma classe cada vez mais numerosa. Conforme o crítico literário e escritor Donaldo Schüller, “já não é possível silenciar a luta de classes, abafada nos poemas homéricos com o predomínio absoluto dos aristocratas e seus nobres”.

Embora didático Teogonia tem fortes elementos morais, formalizada pelo perjúrio dos deuses. As divindades gregas são as responsáveis pela ‘justiça’, controlando os homens em seus excessos e até mesmos em suas paixões. Porém, o que Hesíodo procura denunciar é a sociedade que corrompe e uma religião que tão-somente resigna o ser humano. O poeta de Ascra é o porta-voz da classe camponesa. Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo lamenta a sorte dos fracos e despossuídos, assinalando a única atitude que lhes convém: a submissão.

Não há como negar que Hesíodo foi o mais importante poeta grego depois de Homero, nem tanto pela grandiosidade de seus poemas ou pela dificuldade em romper com a linguagem epopéica, mas, sobretudo pela sua visão dos acontecimentos sociais da época. Para Werner Jaeger, “o seu pensamento estava profundamente enraizado no solo fecundo da existência campesina [o que] lhe outorgava uma personalidade e uma força próprias, [...] concedido pelas musas desvendar os valores próprios da vida do campo e acrescentá-los ao tesouro espiritual da nação inteira”.

A consideração acima fica mais evidente em Teogonia, quando Hesíodo analisa as divindades tendo como enfoque principal Mnemósine (memória), que representa a mãe das musas. Esta divindade tem uma função psicossocial das mais fecundas, já que para a civilização grega no período arcaico (séculos 8 a 6 a.C.) a escrita era reservada a poucos e a memória – lembrança do passado – denotava a própria divindade. Aí reside toda a riqueza épica deixada por Homero ás futuras gerações – e que influenciaria sobremaneira Hesíodo -, já que o aedo (uma espécie de repentista), por valer-se de sua memória, vai criar a literatura oral épica, culminando na épica escrita do aedo Homero. Hesíodo, desta maneira, trata a memória (Mnemósine) como elevada técnica poética, propondo que a divindade dá ao poeta o dom sobrenatural para a busca da verdade e, com isso, a captura do passado como substância do presente.

Assim como os profetas são inspirados pelos deuses, os poetas são inspirados pela Mnemósine. Poetas e adivinhos são agraciados pela clarividência. O poder de saber as coisas que é dado ao poeta, pela mãe das musas, é explicado por Hesíodo como um dom divinatório. Acredita-se que Hesíodo se utilizou dos mitos de povos semíticos para a construção poética de Teogonia. Independente da influência que estes povos tiveram na obra hesiódica vale ressaltar o aspecto sócio-cultural que o poeta acoberta com uma linguagem sempre dirigida aos deuses, mas que na realidade descortina a repressão dos grandes proprietários rurais.
Para Hesíodo, as idades heróicas do ouro, da prata e do bronze já passaram. Vive-se agora a ‘idade do ferro’, onde a vida é cruel e dura. Para Baldry, “a sua preocupação incide sobre a necessidade de pelo trabalho e pela poupança, o agricultor encher os seus celeiros e de uma manifestação de amargo descontentamento, quanto aos desonestos julgamentos dos reis locais”. Nesta direção, Hesíodo carrega em sua obra uma universalidade onírica profundamente enraizada no chamado inconsciente coletivo, remontando a figura arquetípica estudada por Jung. Muitos poetas contemporâneos bebem do arquétipo para a composição de suas obras, como é o caso do escritor latino-americano Ernesto Cardenal.

Hesíodo não criou uma linguagem poética nova. A epopéia lhe serviu muito bem ao seu espírito arrebatado e justo e, nem por isso deixou de ser compreendido pelas camadas sociais mais empobrecidas. Homero tinha a verve fluídica, porém sintonizada com os interesses aristocráticos. Entretanto, a intensidade poética de Homero e de Hesíodo se assemelhava. Hesíodo, por ter reservado grande parte de seus escritos às reflexões sobre a justiça, antecipará a poesia lírica de Sólon, que era um legislador reformista e que foi diretamente responsável pelos princípios democráticos na Grécia antiga. Por fim, o avanço estilístico alcançado por Hesíodo devido ao seu brilhante nível de abstração, inaugurou uma nova fase na poesia grega denominada “pós-épica”.


REFERÊNCIAS


BALDRY, H.C. A Grécia Antiga: cultura e vida. Lisboa: Ed. Verbo, 1968.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

SCHULLER, Donaldo. Literatura Grega. Porto Alegre: Ed. Mercado Aberto, 1985.



quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

Ano Novo!

Desafios para o ano que se começa

Jéferson Dantas


O ano de 2007 começa com enormes desafios para o Brasil, principalmente no que se refere à geração de empregos e esforços concentrados do capital produtivo para o crescimento significativo do PIB. Também é o momento do entendimento político e não de bravatas levianas, que tem ceifado tantas vidas inocentes nos grandes centros urbanos devido à violência em larga escala. O Estado burguês nacional precisa se desvencilhar dos fisiologismos, caso contrário, serão quatro anos de políticas sociais compensatórias, de benesses às velhas raposas políticas e uma estagnação econômica sem precedentes. As retóricas palacianas precisam ganhar corpo estrutural e, para tanto, a reforma política é apenas um dos tantos temas de pauta do Congresso Nacional.

Mas, as mudanças políticas e as reformas sociais não são particularidades do Brasil, evidentemente. A execução do ditador Saddam Hussein à véspera do réveillon e a morte de milhares de iraquianos e militares estadunidenses é a maior demonstração de prepotência e arrogância do governo Bush. O arrivismo sem limites das grandes potências econômicas e a fragilidade da ONU para fazer frente ao ‘senhor da guerra’ George W. Bush permanece sendo um desafio mundial. Até quando o império estadunidense continuará fazendo intervenções sistemáticas no Oriente Médio ou em qualquer outro território do planeta? Até quando a Indústria bélica continuará engordando os bolsos daqueles que fazem da guerra seu grande negócio, incentivado, sobremaneira, pelo Estado?

Logo, construir um país ou um mundo melhor não depende apenas de governos representativos, mas da força e organização da sociedade civil, esta sim, potencializadora de grandes projetos sociais, fiscalizadora dos poderes executivo, legislativo e judiciário. A grandeza de uma nação se dá pela inteireza de homens e mulheres comprometidos(as) politicamente, conscientes de sua prática social. Já é chegado o momento de abominarmos a brutalidade do terrorismo de Estado e desnaturalizarmos a miséria social nos quatro cantos da Terra. Afinal, as contradições do mundo do capital são efetuadas por seres humanos e somente estes últimos podem realizar as transformações necessárias para que vivamos de forma solidária e, coletivamente, mais felizes. Bom 2007 para todos(as)!

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

É Natal!


Espírito natalino e realidade social

Jéferson Dantas



O escritor inglês Charles Dickens (1812-1870) nos deixou obras inesquecíveis, dentre elas uma das mais conhecidas: Um conto de Natal (1843). É a história de um velho avarento (Scrooge) brutalizado pelo capitalismo e que explora seus empregados sem qualquer piedade. Na noite de natal recebe espíritos que elucidam sua mesquinharia e o doentio apego aos bens materiais, através de uma viagem pela sua infância, maturidade e velhice. Scrooge ao se deparar com a solidão iminente, reavalia suas ações e deixa a bondade natalina penetrar-lhe avidamente. Entretanto, o contexto da época na Inglaterra era o pior possível. A chamada 2ª. Revolução industrial não conseguia atender a demanda de operários desempregados e a situação de miserabilidade tornava-se flagrante nas ruelas fétidas de Londres, palco do capitalismo em larga escala. Aliás, as contradições do sistema capitalista começavam a ganhar corpo teórico com os primeiros escritos de Friedrich Engels e Karl Marx, que culminaria no Manifesto do Partido Comunista em 1848.

Assim, o tão propalado espírito natalino, encharcado de solidariedade cristã, ano após ano nos submete a este exame de nossas ações diárias, empurrando-nos, literalmente, para o esperançoso reinício de uma nova caminhada. Reconheço, porém, que a nulidade da atual composição de nossa sociedade política tem nos tornado mais amargos e céticos, aliado ao pífio crescimento econômico. A participação popular só é valorizada em relação à sua capacidade de consumo, ou seja, a participação no mercado é mais importante do que a participação nas decisões de cunho político. O dissabor que nos assola está intimamente associado ao fenômeno mundial da despolitização e do espetacular desmonte das organizações sindicais. Logo, como sorrir diante de um quadro social tenebroso? Como ter esperança quando a sociedade civil está mais preocupada com a sua cotidiana (sobre)vivência?

Não quero ser pessimista ou desmancha-prazer. Esta é uma época que voluntariamente ou não somos tomados de uma contagiante esperança no futuro. Muitos e muitas, certamente, reorganizam e limpam gavetas. Despacham móveis antigos. Pintam a casa com cores vivas, convidam amigos e familiares para a ceia, trocam presentes, estabelecem metas para o ano seguinte, etc. Mas, assim como Dickens conseguiu esboçar, literariamente, uma nesga de esperança numa sociedade industrial embrutecida, nós, brasileiros(as), precisamos mais do que nunca nos sentirmos pertencentes a este país. As manobras da sociedade política, os bolsões de miséria, os conchavos entre grupos oligárquicos regionais, baixa escolarização e a violência sem limites, continuam sendo as nossas inconclusas tarefas de um Brasil que desejamos mais feliz, socialmente equânime e ético!

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

A atualidade de 1984


As metáforas de Orwell e a cultura do fragmento

Jéferson Dantas



As categorias analíticas empreendidas no ofício do historiador (tempo, espaço, memória e identidade), permitem ao pesquisador realizar mediações interpretativas em diferentes contextos históricos sem perder de vista o devir social, fruto das ações efetivamente humanas. Entretanto, atualmente, em diversos níveis socioculturais, o que vislumbramos é o desamparo coletivo entremeado nos estilhaços imagéticos que nos empurram para o drama, a cólera e a imobilidade. As utopias foram arrefecidas. Nos termos do educador Paulo Freire, por mais paradoxal que possa parecer, urge “humanizar os homens” antes que se dilacerem de forma definitiva. Nesta direção, a categoria analítica memória se configura como uma referência histórica primordial na apreensão deste mundo envolvido na era do conhecimento e pensamento único.

A idéia de real e desenvolvimento social orquestrados pelas políticas globalizantes e neoliberais estão alinhadas à indústria cultural, que manipulam estrategicamente nossa percepção do mundo. As forças sociais produtivas foram transformadas num imenso palco, repleto de atores/personas cada vez mais individuados, em situações espaço/temporais efêmeras. As memórias coletivas ‘dão livre passagem’ para o instantâneo e, não por acaso, estamos sofrendo lapsos de memória, tal como na metáfora orwelliana. George Orwell (1903-1950), escritor inglês, notabilizou-se com a obra Revolução dos Bichos, mas foi com 1984 que o autor descreveu com extrema competência a devassidão do privado, tendo como instrumento de controle a teletela, tema desse breve ensaio.


Devassidão do Privado e a perda da identidade humana

O narrador-personagem criado por Orwell – Winston Smith – é um membro da campanha da economia e responsável pela manipulação das notícias e dos acontecimentos históricos criados pelo Partido, que tem como mandatário máximo o onipotente e despersonalizado Grande Irmão (Big Brother). A narrativa se passa numa Londres sombria e miserável. O Partido tem quatro ministérios: o ministério da verdade (responsável pelas notícias, diversão, belas-artes e instrução); o ministério da paz, que se ocupa da guerra; o ministério do amor, que mantém a lei e a ordem; o ministério da fartura, responsável pelas atividades econômicas. Os lemas do Partido são: Guerra é Paz! Liberdade é Escravidão! Ignorância é Força! Orwell monta sua narrativa na perspectiva dos regimes totalitários que surgiram pouco antes da eclosão da segunda guerra mundial (1939-1945).

No departamento de registro Winston se encarrega de manipular fatos e deturpar informações, inventando notícias auspiciosas à população eufórica. O seqüestro da memória aparece na obra em sua totalidade, analisada por Winston como um direito que não lhe era mais garantido, expressando categoricamente a cultura do fragmento. Importante assinalar que Londres faz parte de uma potência denominada Oceania, permanentemente em conflito com a Eurásia e a Letásia, outras potências políticas da ficção. Ao se referir às superpotências Orwell preconiza as alianças políticas/econômicas dos dias de hoje, ou seja, blocos econômicos unidos pelo controle da mão-de-obra abundante e barata, além de elevada quantidade de matéria-prima em regiões onde impera regimes políticos corruptos e fragilizados pelas sucessivas guerras civis.
Winston trabalha na mesma seção de O’Brien, membro do partido interno; um ser bruto, rude, de pouca conversa na concepção de Winston. O grande inimigo do povo é Emmanuel Goldstein, repudiado todos os dias nos dois minutos de ódio, numa espécie de catarse coletiva. Goldstein é caracterizado fisicamente pelo autor como um homem magro e de procedência judaica, referências implícitas ao anti-semitismo hitlerista durante o regime nazista. As formulações teóricas de Goldstein estão inseridas num compêndio denominado ‘O Livro’, numa alusão às idéias do filósofo Karl Marx. A fraternidade representa um grupo de traidores do Partido e do Grande Irmão, igualmente execrada pelos membros do partido interno/externo. Para que nenhum membro do Partido cometa qualquer tipo de atentado contra o Grande Irmão existe a polícia do pensamento. Qualquer ato de subversão é classificado como crimidéia, passivo de execução pública através da forca.

Há ainda no desdobramento da ficção referências à criação de uma nova expressão lingüística (novilíngua), onde a contração das palavras e a supressão de outras possibilitaria a estruturação de uma linguagem minimalista e instrumental. Esta ‘profecia’ de Orwell pode ser associada nos dias de hoje à língua inglesa, que é tratada como língua universal em diversas áreas comerciais, mas principalmente no mundo da cibercultura. O Partido tem a clara preocupação de atrair as novas gerações para a sua proposta ideológica, reunidas na sigla INGSOC: novilíngua, duplipensar e a mutabilidade do passado. O duplipensar é um condicionamento social na maneira de reagir diante de determinados acontecimentos sociais, promovendo a dissociação espacial e temporal e, portanto, a anulação da memória. Diante da contradição do que é certo ou errado, real e imaginário, o Partido cria a falsa idéia de que a Oceania progride a passos largos numa evidente manipulação dos dados concretos daquela sociedade.

Todos os produtos comercializados ma Oceania tem a marca Vitória (seria uma alusão antecipatória à globalização?). Convivem com o racionamento, embora o ministério da fortuna anuncie, regularmente, produções recordes de gêneros alimentícios. A uniformidade do pensamento propagada pelo Partido atravessa todos os sentidos humanos. Este controle excessivo e autoritário causa uma impotência coletiva, eterna ansiedade, claustrofobia social generalizada. Crianças desde tenra idade são adestradas para se tornarem espiãs e delatoras – caso necessário – de seus próprios pais, como acontecia durante o período de formação da juventude hitlerista.

Nesta direção, Winston entende que somente a revolução a partir da prole – pessoas que não pertenciam ao Partido e que moravam em bairros fétidos e afastados do centro de Londres – poderia alterar a correlação de forças determinada pelo sistema de vigilância das teletelas. Porém, sistematicamente a prole era aterrorizada pelo ataque de bombas-foguete jogadas pela polícia do pensamento, assassinatos em massa que nunca constavam nas estatísticas oficiais. Os ‘proles’ por adorarem o jogo, a loteria, compreendiam o mundo à sua volta de maneira intuitiva; revoltavam-se, mas não conseguiam se organizar politicamente, razão pela qual eram explorados e expurgados facilmente, conforme palavras do narrador-personagem.
Todavia, a busca de uma memória que se perdeu entre as ranhuras do passado histórico vale à Winston a traição de O’Brien, que através da polícia do pensamento tortura-o até à exaustão. Winston é transformado numa não-pessoa, assim como Júlia, sua amante e cúmplice. Ao trair o que lhe era mais precioso – o amor de Júlia – Winston, despersonalizado e autômato, passa a venerar o Grande Irmão.

Orwell nos brindou com metáforas subjacentes aos regimes totalitários (tanto de esquerda como de direita), ma que podem ser profundamente associadas aos dias de hoje. Na era da globalização e de regimes políticos neoliberais, grandes conglomerados midiáticos ditam o que precisa ser ‘lembrado’ e o que precisa ser ‘esquecido’. A cultura do fragmento tem aí o seu viés antidemocrático e imobilizador. O controle da informação e os monopólios da mídia são ameaças à organização coletiva, unidas que estão na desqualificação permanente das falas discordantes ou dos discursos dissonantes. Pensando bem 1984 deixou de ser uma metáfora!


REFERÊNCIAS


BERTONHA, João Fábio; MOSCATELLI, Renato. A revolução dos bichos como instrumento para estudo do estalinismo e da Revolução russa. Jornal Bolando aula de História. Abr. 2000.

ORWELL, George. 1984. Trad por: Wilson Velloso. 12 ed. São Paulo: Editora Nacional, 1979.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006


Quando morre um ditador

Jéferson Dantas â



A morte do ditador chileno Augusto Pinochet aos 91 anos de idade é emblemática para a América Latina. Se, por um lado, todos(as) que sofreram com as perseguições políticas, torturas, mutilações e assassinatos de familiares sentem-se aliviados(as) com o desaparecimento do ditador, não se pode afirmar que é um sentimento compartilhado por todo povo chileno. O que mais me chamou a atenção nas capas dos periódicos nacionais e internacionais no funeral de Pinochet foi a representatividade significativa de jovens em sua despedida, grande parte nem era nascida quando Salvador Allende foi derrubado por um golpe de Estado.

O que isso quer nos dizer? Um primeiro aspecto a ser analisado é a longevidade dos ditadores na América do Sul. Recentemente, o ditador paraguaio Alfredo Stroessner morreu no Brasil com 93 anos de idade. Médici, Geisel e Figueiredo no Brasil também foram longevos. Quando morre um ditador fecha-se um ciclo histórico, mas não se arranca, definitivamente, páginas sangrentas de nossa história. Um segundo aspecto a ser elucidado é a frágil sensação coletiva de que a economia e a segurança nacional foram generosamente contempladas nos anos que os ditadores governaram. Aliás, para os conservadores e as oligarquias regionais do Brasil, a ditadura militar foi pródiga, acentuando o mar de corrupção, favoritismo, clientelismo e repressão sistemática aos desafetos.

Nesta direção, os locais de memória (escolas, museus, universidades, arquivos públicos) são importantes territórios de elucidação dos crimes cometidos em nome da Ditadura ou lugares em que se reforça a heroicização da brutalidade e da arbitrariedade sem limites. Pinochet divide afetos no Chile e, por ter se declarado um homem cristão, seria incapaz de cometer crimes bárbaros em nome de seu governo. A ameaça da comunização na América Latina era o argumento mais utilizado para o uso da força, do regime do medo, da delação e da violação dos direitos humanos. O desaparecimento de Pinochet carrega, simbolicamente, esta necessidade de repisarmos o terreno da história na América Latina sob uma nova perspectiva sócio-cultural, tomando o devido cuidado de não sacralizarmos ditadores post mortem.

â Historiador. Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador do GTEC - Grupo de Trabalho - Estudos do Currículo - da Comissão de Educação do Fórum do Maciço do Morro da Cruz E-mail: clioinsone@gmail.com

quarta-feira, 6 de dezembro de 2006


Estranhamentos e fronteiras

Jéferson Dantas [1]


O compositor, músico e escritor gaúcho, Vitor Ramil, conseguiu imprimir em seu ensaio A estética do frio uma metáfora conceitual vigorosa e necessária, principalmente, para os que moram na região mais ao sul do Brasil. Ramil não se reconhece identitariamente próximo aos que habitam os territórios contíguos à linha do Equador, neste diverso e desigual país-continente. Segundo o autor, o “frio [é] a metáfora capaz de falar de nós de forma abrangente e definidora, [simbolizando] o Rio Grande do Sul e [sendo] simbolizado por ele”.

Só é possível compreender tal metáfora olhando um pouco para as histórias regionais desse país. Após a independência política formal do Brasil na primeira metade do século 19, o imperador D. Pedro I impôs uma constituição outorgada (1824), a permanência do escravismo e a punição severa às províncias que desejassem o mínimo de autonomia política. Daí já se depreende o quanto foi difícil estruturar um Estado-Nação num país onde reinava o absolutismo monárquico e a opção clara pela economia agroexportadora, ou seja, a continuidade do modelo colonial em detrimento das nações industrializadas. Abalado por intensas críticas internas e tendo de abdicar o cargo em favor de seu filho D. Pedro II – então com apenas cinco anos de idade - e retornar à Portugal para garantir a sua coroação, o Brasil passou a ser governado por um sistema de regências. E é, justamente, o período regencial, o divisor de águas na história política e cultural do Brasil.

Como bem assinala o professor Manuel Correia de Andrade “o sentimento de brasilidade ainda era muito tênue e os problemas locais e provinciais eram bem mais preocupantes que os problemas propriamente nacionais”. Foi nesse contexto que a revolta farroupilha ganhou força, sendo até hoje a mais importante guerra civil travada em território nacional, quer pela sua duração (1835-1845), quer pela ameaça real que trouxe à unidade nacional. Para Andrade, o Rio Grande do Sul tem uma história sui generis, pois foi tardiamente povoada pelos portugueses, além de ter convivido com o litígio fronteiriço entre Portugal e Espanha. Esta verdadeira área de conflitos entre lusitanos e castelhanos demorou a ser solucionada, tanto no Rio da Prata como nas margens dos rios Uruguai e Paraná (território das Missões jesuíticas). Os rio-grandenses tinham com os castelhanos da região do Prata velhos desentendimentos. A imprecisão das fronteiras, ainda que bem definidas pelos tratados realizados pelos impérios ibéricos, não eram formalmente aceitas pelos habitantes acostumados a atravessá-las, a participar de peleas, já que possuíam propriedades dos dois lados da fronteira e manejavam rebanhos inteiros sem respeitá-las. O vaivém dos rebanhos causava atritos entre os “industriais do couro e de charque sediados no Brasil, na região de Pelotas, e na Argentina, em Buenos Aires” (BANDEIRA apud ANDRADE, 1999, p. 78).

Em linhas gerais, a revolta farroupilha, que também envolveu a província de Santa Catarina, foi ocasionada pela exploração fiscal, má administração e ausência de afinidade entre os presidentes da província e o povo gaúcho. Aliás, os presidentes das províncias eram costumeiramente alheios aos problemas locais que administravam, pois eram somente homens de confiança do poder central.

Nesta direção, Vitor Ramil não pretende em A Estética do frio definir com precisão a identidade do gaúcho ou teorizar amplamente sobre ‘qual identidade nacional temos’ e como ela se projeta no imaginário coletivo. Seria uma tarefa hercúlea, com mais indagações do que aproximações identitárias. Logo, Ramil está mais preocupado em estabelecer uma análise pontual e particular do que compreende ser o gaúcho, não propriamente aquele estereotipado, vulgarmente divulgado pela mídia. Mas aquele gaúcho urbano que se depara com os diversos brasis e que, de repente, no centro da sala, seminu, em pleno inverno do Rio de Janeiro, olha pela tevê os campos tomados pela geada, a neve na serra, e se dá conta de que precisa retornar a esse lugar-território. Foi o que aconteceu com Ramil. A partir dessa alegoria semântica (o frio como emblema do território), o compositor gaúcho passa a se reconhecer, decisivamente, naquele lugar. A introspecção criativa de Ramil é tributária, pois, desse lugar-território que dialoga, exaustivamente, com a língua hispânica, mas que ao mesmo tempo tem a contribuição cultural do imigrante alemão e italiano e, evidentemente, dos afrodescendentes. A musicalidade de Ramil é a confluência do regional com o urbano, traduzida principalmente na milonga, gênero musical apreciado pelos gaúchos e castelhanos, de caráter repetitivo, melancólico e reflexivo.

As fronteiras territoriais/culturais promovem diferentes suscetibilidades, algumas animosidades e representações diversas do que chamamos Brasil. O estranhamento está incorporado ao modus vivendi do gaúcho, que se construiu, historicamente, em meio a batalhas contra o governo imperial, estando sua figura invariavelmente associada à pecha de subversivo, arrogante e destemido. A sensação de Ramil, compartilhada, certamente, por milhares de rio-grandenses, deve ser a mesma de todos os brasileiros desse território: o que é ser brasileiro na quentura do Oiapoque até às gélidas invernadas no Chuí?


REFERÊNCIAS


ANDRADE, Manuel Correia. As raízes do separatismo no Brasil. São Paulo: UNESP/EDUSC, 1999.

RAMIL, Vitor. A Estética do Frio: conferência de Genebra. Porto Alegre: Satolep, 2004.





[1] Historiador e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador do GIEL – Grupo Interdisciplinar de Estudos da Linguagem e articulador do GTEC/FMMC – Grupo de Trabalho Estudos do Currículo, do Fórum do Maciço do Morro da Cruz, Florianópolis/SC. E-mail: clioinsone@gmail.com. Blog: http://clioinsone.blogspot.com/.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Os rumos da educação em Santa Catarina

Jéferson Dantas â



Confesso que, por um instante, fiquei na expectativa da nomeação do novo secretário de educação em Santa Catarina. Uma apreensão típica de quem acredita numa surpresa positiva para um terreno tão estratégico como é o campo educacional. A nomeação de Paulo Bauer, entretanto, traz-me más lembranças e gostaria de refrescar um pouco a memória do(a) leitor(a).

Durante a greve do magistério no primeiro semestre de 2000, o então vice-governador, Paulo Bauer, fez coro ao presidente da assembléia legislativa daquele período, Gilmar Knaesel, classificando os educadores catarinenses como baderneiros. O cuidado e a lisura com que o agora nomeado secretário de educação, - que se diz preocupado com a qualificação dos educadores - contrasta, fortemente, com o vice-governador da “oposição” de seis anos atrás. Na estratégia utilizada pelo atual governo catarinense, numa aliança que tem como tripé PMDB, PFL e PSDB, fica difícil discernir quais critérios foram ou estão sendo utilizados para acalmar os ânimos na luta por cargos públicos de destaque. Afinal, a pasta da educação representa 30% do orçamento do Estado. Em síntese, o novo secretariado estadual é fruto de um arrivismo desmedido, onde as questões estruturais e as áreas de investimento revelam-se como acertos políticos inquestionáveis.

O embate na área da educação é e sempre será legítimo, assim como as conquistas do magistério público ao longo do processo democrático em construção neste país. Então, o que esperar de um secretário que chama os educadores de baderneiros de forma generalizada? O que esperar de um governo que adota, claramente, a estratégia do toma-lá-da-cá para poder administrar sem sobressaltos e com o mínimo de oposição possível? Deste modo, se alimentei alguma expectativa em relação aos rumos da educação no Estado, esta se esvaiu rapidamente. Logo, melhor estar atento ao que virá!

â Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor da rede municipal de ensino em São José/SC. Pesquisador do GTEC - Grupo de Trabalho - Estudos do Currículo - da Comissão de Educação do Fórum do Maciço do Morro da Cruz E-mail: clioinsone@gmail.com

quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Novembrada - 30 de novembro de 1979


Novembrada 27 anos depois

Jéferson Dantas â



A novembrada, como ficou conhecida a manifestação contra o último ditador do regime militar (1964-1985), João Baptista Figueiredo, ainda está bem fresca na memória dos(as) florianopolitanos(as). No dia 30 de novembro de 1979 uma comitiva do palácio do governo aguardava o ditador, sem sequer imaginar que um grupo de jovens do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Santa Catarina pudesse estragar a festa na tão acolhedora, pacata e simpática Ilha de Santa Catarina. Engrossava o coro dos descontentes os taxistas ilhéus, que tinham de conviver com o racionamento de combustível nos postos de gasolina, tendo em vista a crise do petróleo no Oriente Médio. “João, o presidente da conciliação”, - um samba fora de propósito encomendado para o músico Luiz Henrique Rosa - foi uma tentativa política mal fadada de tornar Figueiredo um homem popular. A derrocada populista iniciava-se, justamente, numa cidade escolhida a dedo pela sua aparente apatia e despolitização.

O que ocorreu depois foi catastrófico para os planos dos generais auriverdes. Houve empurra-empurra, bofetões entre ministros e populares. Nem o cafezinho no saudoso “senadinho” salvou Figueiredo dos encontrões com a população enfurecida e insatisfeita com o modelo econômico adotado pelos militares. Inflação galopante, dívida externa astronômica. Tempos de abertura política. Movimentos sociais se reorganizando. Tudo contrastava. Crianças com as bandeirinhas de Santa Catarina e do Brasil realçavam com matizes surreais as cenas desenroladas naquele fatídico dia. Uma placa homenageando Floriano Peixoto foi arrancada da Praça XV. Balões enormes de gás hélio foram despedaçados. Uma resposta surpreendente que o Brasil inteiro passou a ter como referência. Longe do alcance de populares, Figueiredo foi recepcionado com uma churrascada em Palhoça, maldizendo os que teriam destratado sua mãe.


O governador biônico (indicado pelos militares) Jorge Konder Bornhausen utilizou as prerrogativas da Lei de Segurança Nacional e algumas lideranças estudantis foram presas e julgadas. Entretanto, a ala progressista da Igreja Católica com o apoio da OAB/SC e membros do MDB histórico, conseguiu reverter as condenações. Os dias que se seguiram foram desconcertantes para o governo estadual, que sofreu um desgaste enorme durante o processo condenatório dos jovens universitários. Que este breve registro sirva-nos de alento no que se refere aos desmandos da democracia representativa e, sobretudo, contra qualquer espécie de ditadura. O escritor Lima Barreto (1871-1922) dizia que o “Brasil não tinha povo, mas público”. Pelo menos neste dia, Florianópolis foi povo. E com atitude!




â Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor efetivo da rede municipal de ensino em São José/SC. Pesquisador do GTEC - Grupo de Trabalho: Estudos do Currículo da Comissão de Educação do Fórum do Maciço do Morro da Cruz e do GIEL – Grupo Interdisciplinar de Estudos da Linguagem. E-mail: clioinsone@gmail.com

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

Repensando a cidade que queremos e habitamos


Um olhar sobre a comunidade Morro da Queimada

Jéferson Dantas·

O passado não reconhece seu lugar: está sempre presente.
(Mário Quintana)

1. A importância da educação do olhar


A epígrafe acima do poeta gaúcho Mário Quintana estava impressa na camiseta de uma das funcionárias de nossa Escola. Nunca tais palavras foram tão certeiras para os propósitos pedagógicos de nossa caminhada até à comunidade Morro da Queimada. No dia 13 de março de 2004, trabalhadores em educação da Escola de Educação Básica Jurema Cavallazzi, literalmente subiram o morro para conhecerem a realidade social de nossos educandos, num dos bairros mais empobrecidos da Ilha da Magia. Guiados pelo professor de Geografia, Eduardo de Souza, futuro articulador do Projeto Escola Aberta[1] em nossa comunidade, iniciamos o nosso trajeto pela servidão Manoel Sibrino Coelho. Esta servidão encontra-se paralela à rua principal onde está situada a Escola[2].
O professor Eduardo nos relatou que há poucos registros históricos sobre o Bairro, enfatizando que há uma fronteira social bastante nítida em nossa comunidade, isto é, os moradores da “parte baixa” pertencem ao Bairro José Mendes, e os moradores da “parte alta”, pertencem ao Morro da Queimada. Esta é uma problemática pertinente, tendo em vista que as rotulações e/ou preconceitos sociais das quais os moradores do Morro da Queimada são vítimas, deve-se, sobretudo à violência sistemática promovida pelo narcotráfico, algo que “pessoas de bem” não devem compactuar. Além disso, os escassos registros históricos das duas comunidades limítrofes revelam que os antigos moradores, como o senhor Manoel Sibrino Coelho, eram proprietários de imensos lotes de terra do local, configurando práticas privatizantes tão comuns no Brasil Colonial e pós-independente. Estas permanências estão enraizadas até os dias de hoje, pois mesmo numa comunidade tão pauperizada como é o caso do Morro da Queimada, há moradores que privatizam determinados espaços sociais para a prática de esportes, cobrando taxas de uso; há casos também de moradores que construíram galpões para se guardar automóveis, tendo em vista a ausência de locais para estacionamento. Logo, as garagens improvisadas também são importantes fontes de renda para quem as construiu.
Retomando a nossa travessia, o professor-guia nos relatou ainda que a servidão de acesso ao Morro só foi “lajotada” na década de 1980. Eram comuns os desmoronamentos e acidentes envolvendo os moradores locais. O sistema de esgoto continua precário e, por que não dizer, inexistente ou clandestino em grande parte do morro. No entanto, há uma organização política mínima na comunidade, que possibilita apontar e encaminhar soluções específicas para as demandas locais. Porém, a equipe pedagógica de nossa escola compreende que a articulação entre as duas comunidades – Queimada e José Mendes – é falha em vários sentidos, pois não se reconhecem identitariamente. A Escola, neste sentido, seria o locus social ideal para “amarrar” as demandas dos dois bairros, num processo de entendimento das realidades conjuntural e estrutural.
Indaguei ao professor Eduardo o porquê do bairro se denominar “Queimada”. O professor respondeu que nos terrenos baldios do morro, onde se concentravam toda espécie de lixo e mato, os moradores queimavam o matagal para as crianças jogarem futebol. Daí, o apelido pegou. Quando diferentes grupos de crianças e adolescentes combinavam uma “pelada”, era comum se ouvir: “Vamos bater uma bola lá na Queimada?”.
As histórias contadas pelo professor-guia e os diferentes olhares que se lançavam a cada trecho de nossa caminhada, denotavam também os imensos contrastes sociais na comunidade. Bem no início do morro era possível perceber casas de alvenaria, bem acabadas, contrastando com casebres de madeira sobre estacas, ou ainda casas com reboco à vista. No que se refere aos valores culturais da comunidade, são comuns as tendas espíritas, os terreiros de candomblé e a presença das crenças evangélica e católica, dando bem a medida de uma pluralidade religiosa no local (sincretismo religioso). O professor Eduardo chegou a mencionar que o Bairro Morro da Queimada, possivelmente, é o local onde se concentra o maior número de terreiros por metro quadrado do Brasil. Algo que precisa, efetivamente, ser pesquisado com maior nível de detalhamento.
Mas, não foi apenas o professor Eduardo que nos conduziu nesta travessia. Nossos funcionários de serviços gerais da Escola, que são ou foram moradores do Bairro, relataram que a comunidade sofreu profundas modificações estruturais nos últimos vinte anos. Janilton, colaborador da Escola há quase quinze anos, relatou-nos que antigamente havia um riacho que atravessava o início do morro, e até hoje é possível ouvir o som do rio sob uma horta construída no local. O riacho foi canalizado e desemboca no mar através de tubulação subterrânea. Até meados da década de 1980, segundo Janilton, era possível beber a água deste riacho. Porém, já a partir da década de 1990, o riacho estava completamente poluído por dejetos orgânicos, assim como o próprio mar que circunda o Bairro José Mendes.[3] A funcionária Jocélia nos relatou também que quando era menina, lavava roupa num tanque natural de água com familiares e outros moradores. Hoje, o local está aterrado é há uma residência em seu lugar. Todavia, algo nos chamou a atenção numa das residências – e, talvez aqui um dos maiores contrastes: uma casa bastante simples com uma antena via satélite.
Já no alto do morro, vislumbramos uma paisagem lindíssima da ilha de Santa Catarina, englobando os bairros da Costeira do Pirajubaé, Saco dos Limões e Pantanal. Aproveitei a formação específica de nosso guia para lhe perguntar o que significa, conceitualmente, o Maciço do Morro da Cruz. O professor Eduardo me disse que a denominação Maciço refere-se a uma formação rochosa ampla que já sofreu um longo processo de erosão com o passar do tempo. Entretanto, recomendou-me a leitura de um dicionário de Geografia com conceitos pertinentes à geomorfologia.
Prosseguindo a nossa jornada pudemos perceber que não estávamos diante de uma única comunidade, mas de várias comunidades numa só, e como isto se constrói historicamente. Para se ter uma idéia desta realidade, basta atentar para as denominações que alguns locais do Morro da Queimada recebem: Boca do Vento e Jagatar. O local denominado Boca do Vento fica bem em frente a um dos templos da Igreja Assembléia de Deus. Está completamente baldio, com muita sujeira e mau cheiro. Aliás, o lixo exposto a céu aberto é uma situação presente e permanente no Bairro. A Boca do Vento está circundada por muros – já que é uma propriedade privada - e deste local é possível enxergar as pontes que integram a ilha ao continente. O professor Eduardo fez uma importante comparação da situação urbana de Florianópolis nos dias de hoje com duas representações iconográficas de Debret no século XIX.[4] Os lugares de memória representados pelo pintor francês Debret estão, atualmente, quase que completamente desfigurados. O aterro da Baía Sul na década de 1970 tornou a paisagem de Florianópolis mais verticalizada e sem os ares de provincianismo tão comuns até a década de 1960.
Próximo à Boca do Vento havia muitas crianças que estudam em nossa Escola. Era transparente a felicidade destes meninos e meninas com a presença dos professores e diretores. Aliás, alguns professores chegaram a visitar seus alunos em suas residências. As crianças sentiram-se importantes e prestigiadas com a nossa visita. Antes de descermos o morro, fomos na divisa da comunidade da Queimada com a Comunidade do Mocotó, esta última tristemente conhecida pelo narcotráfico e por chacinas nos morros. O professor Eduardo comentou que, para os técnicos do IPUF – Instituto de Planejamento e Urbanismo de Florianópolis – os morros da Queimada e Mocotó estão assinalados como bairros centrais da capital, deturpando os dados oficiais de qualidade de vida da cidade e elevando o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
Na descida do morro entramos numa estradinha esburacada que dá acesso a um local denominado Jagatar[5], que foi invadido ilegalmente pelos moradores. Por ser um território não legalizado, os próprios moradores da comunidade da Queimada não respeitam os ocupantes deste local. No Jagatar não há tratamento de esgoto e toda a rede elétrica é clandestina, ou seja, a prática das gambiarras é uma constante no local. Perto desta localidade havia uma fabriqueta de massas, que chegou a funcionar por um tempo, absorvendo a mão-de-obra local. Com o fechamento da microempresa, os trabalhadores locais ficaram sem ter para onde ir e passaram a ocupar ilegalmente o terreno das proximidades. Hoje, a antiga fabriqueta de massas abriga uma Igreja Católica, que dá respaldo aos moradores ilegais. A prefeitura, no entanto, faz vistas grossas, mas em compensação não realiza qualquer iniciativa de urbanização da comunidade como um todo.
Antes de voltarmos para a Escola, passamos em frente à creche que atende a Comunidade da Queimada. A creche se chama São Sebastião e foi fundada no dia cinco de outubro de 1991, com recursos da Organização Não-Governamental Ação da cidadania dos empregados da Caixa Econômica Federal. Ao lado da creche há dois bares e mais adiante uma pequena mercearia[6].


2. O momento do registro Coletivo: limites e possibilidades de intervenção pedagógica

Ao retornarmos para a Escola tomamos um rápido café e depois fomos registrar coletivamente as nossas impressões da caminhada. Fiquei como sistematizador das falas coletivas, dividindo o quadro em três segmentos: 1) Meio Ambiente; 2) Aspectos sociais e culturais; 3) Aspectos econômicos e renda. A Diretora Geral ficou responsável pelas inscrições.
Os professores consideraram que a comunidade carece de uma coleta seletiva de lixo e o tratamento de água e esgoto. Aliás, uma professora me relatou que alguns alunos não têm banheiro e que fazem as suas necessidades fisiológicas no mato. Registrando fielmente a fala do aluno, ele teria comentado o seguinte para a professora: “Eu caco no mato!”. Ainda no segmento Meio Ambiente, os professores apontaram que as casas possuem uma construção frágil e que muitas estão em situação de risco (desmoronamento) e há muitos dejetos orgânicos de animais pelas ruas, principalmente de cachorros.
Já no segmento dos Aspectos Sociais e Culturais, foi considerado que a maioria de nossas crianças são negras, mas há uma diversidade étnica muito grande, principalmente de famílias originárias do oeste do Estado.[7] Além disso, apresentam diferentes crenças religiosas. Convivem diariamente com a violência doméstica e o narcotráfico. As crianças têm pouquíssimas áreas de lazer e as famílias, aparentemente, são bastante influenciadas pela televisão, já que na maioria das casas há pelo menos um televisor. Uma professora, ex-moradora da comunidade, enfatizou que o Bairro tem duas realidades bem distintas: uma realidade diurna, mais tranqüila, e uma realidade noturna, onde impera o tráfico de drogas, a prostituição e o alcoolismo.
No segmento Trabalho e Renda uma professora apontou que os moradores da comunidade são consumidores potenciais, pois querem ter os mesmos bens da classe média. Este apontamento foi questionado por uma outra professora, que considerou que eles não têm condições materiais para adquirir bens de consumo tipicamente da classe média, esta última, freqüentadora assídua dos templos de consumo (shopping centers); na realidade, estes moradores são consumidores de sobras dos feirões e usam roupas e calçados doados, fora dos padrões de suas medidas. Um professor comentou que já estão sendo realizadas pesquisas nos morros da capital por grandes empresas, objetivando a identificação do perfil consumidor destas comunidades.
Evidentemente, que outras questões foram levantadas e que não foram registradas neste breve texto. Afinal, são diversos olhares sobre a comunidade e é bem provável que muitos professores e funcionários tenham analisado a realidade social dos nossos educandos por diferentes prismas. O que ocorre, porém, numa atividade como esta pela qual nos propomos é a qualidade de nosso planejamento de aula e, por conseguinte, a importância de registrarmos as nossas impressões sobre o processo ensino-aprendizagem de nossos educandos. Volto a afirmar aqui o que disse para os professores no dia 13 de março: nós, educadores, fazemos a diferença sim! Por mais desenganados que nos encontremos, seja pelos salários aviltantes ou pelas condições de trabalho indesejáveis e insalubres, não podemos vendar os olhos para uma realidade evidente e estrutural. Ao retomarmos os nossos planejamentos, tenho convicção de que não estaremos executando uma tarefa burocratizante e mecânica, mas sim um projeto de ensino quiçá interdisciplinar, envolvendo todos os sujeitos históricos da Escola.
Por fim, é importante agradecer aos que entenderam ao chamado desta primeira caminhada pedagógica de 2004. Outras caminhadas estão previstas ao Morro da Queimada, desta vez com roteiros prévios, para que possamos dialogar com as famílias e com os alunos, identificando suas necessidades mais prementes, seus sonhos, suas utopias. E parafraseando o mestre João Guimarães Rosa, o importante não é a chegada e nem a partida, mas o processo histórico de nossa travessia; ou ainda lembrando a epígrafe deste texto: o passado não reconhece o seu lugar. Está sempre presente. E será justamente na construção dialógica do passado com o presente e do presente com o passado, que teremos as ferramentas conceituais para ultrapassarmos as concepções rasteiras do senso comum.


· Bacharel Licenciado em História e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
[1] O Projeto Escola Aberta configura-se como um dos antigos sonhos de toda a equipe pedagógica da Escola. Em linhas gerais, propõe a abertura da Escola nos finais de semana para os pais, alunos e equipe pedagógica, objetivando o oferecimento de oficinas diversificadas, treinamentos específicos para a área de informática, práticas desportivas e grupos de estudos para as diferentes áreas do conhecimento humano. Por ser um projeto orgânico, debatido nas instâncias deliberativas da Comissão de Educação do Fórum do Maciço, seu propósito maior é aproximar as comunidades locais às Escolas do Fórum.
[2] A rua principal de acesso à nossa Escola chama-se Professor Aníbal Nunes Pires. Esta rua foi inaugurada há cinco anos atrás – no dia 23 de março de 1999, aniversário da cidade - na primeira gestão da prefeita Ângela Amin, considerada por determinados meios de comunicação como uma das melhores prefeitas do Brasil. Entretanto, passados exatos cinco anos desde a inauguração da rua, os problemas estruturais continuam sendo os mesmos, embora a mídia impressa catarinense tenha ressaltado com orgulho o fato de Florianópolis ser considerada a capital com melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) para crianças e adolescentes do país.
[3] Cabe ressaltar que há alguns anos atrás a empresa Vonpar Refrescos Ltda., representante da Multinacional Coca-Cola, foi responsável por boa parte da poluição da praia do Bairro José Mendes. O fechamento da fábrica e pendengas judiciais posteriores, não solucionaram o processo de poluição permanente do local.
[4] A Missão Artística francesa chegou ao país por iniciativa de D. João VI, no ano de 1816. Os artistas franceses, inicialmente, foram contratados como professores. Além de ministrarem aulas em vários cursos criados durante a permanência da Família Real portuguesa no Brasil, os artistas franceses debruçaram-se sobre as paisagens e o cotidiano das cidades do litoral brasileiro, destacando-se Nicolas-Antoine Taunay e Jean-Baptiste Debret.
[5] O nome Jagatar foi retirado da ficção televisiva, mais precisamente da teledramaturgia global. A novela do horário das seis chamada “Estrela Guia”, estrelada pela cantora e dublê de atriz, Sandy, retratava uma comunidade hippie localizada numa cidade distante e cercada de bosques. Ironicamente e com uma boa dose de humor tipicamente brasileiro, os moradores ilegais desta região da Queimada batizaram o local de Jagatar, ou seja, um lugar no meio do nada rodeado de mato. Cabe ressaltar aqui a influência que os meios de comunicação, notadamente, a televisão, exercem sobre as comunidades empobrecidas, inculcando valores e um modus vivendi estranho ao seu cotidiano.
[6] Levando-se em conta que se trata de uma creche, os bares deveriam se localizar em pontos mais afastados, conforme a Lei vigente.
[7] Na periferia da capital e, principalmente nos morros, encontramos muitos migrantes catarinenses que, em busca de melhores condições de vida, acabam se marginalizando cada vez mais. A ausência de políticas públicas efetivamente estruturais no meio-oeste catarinense e também no planalto serrano ocasiona o inchaço urbano em Florianópolis e o desequilíbrio social crescente.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

A África revisitada




Jéferson Dantas



Segundo o geógrafo Rafael Sanzio Araújo dos Santos ainda não se fez o “suficiente, o necessário, o durável pela África. O mundo, a Europa, a América, tem grave responsabilidade nesse processo secular de falência”. Num continente onde 40 de seus 52 países estão entre os mais pobres do mundo, não há mais como vendar os olhos para a destruição permanente de um território historicamente explorado pelas grandes potências capitalistas. Uma exploração construída pela violência física e simbólica em relação às grandes civilizações africanas, escravismo mercantil e a ideologia xenófoba proveniente de várias partes da Europa.

O Brasil, sendo a segunda maior nação de ascendência africana do mundo, deve muito a esse continente. Afinal, foram os braços dos escravos africanos que construíram esse país nos últimos quatro séculos. E, assim como na África, os regimes colonial, imperial e republicano no Brasil não deram conta da inclusão da grande maioria dos afrodescendentes no processo produtivo nacional. Os afrodescendentes ainda não conseguiram estabelecer um processo de “empoderamento” que lhes dê a visibilidade merecida. Entre preconceitos e estereótipos que acompanham a triste e sinuosa história desses homens e mulheres separadas pelo Atlântico, há a permanência da ideologia eurocêntrica, mais apaziguadora do que comprometida com a situação de miserabilidade dos povos africanos.


Assim, para que a nação brasileira possa construir um projeto de inclusão, torna-se imprescindível reavaliar os descaminhos do processo educacional público brasileiro, pedagogicamente/historicamente autoritário e extremamente excludente. Além disso, é fundamental repensar a realidade cruel das comunidades periféricas de morros e encostas de várias cidades brasileiras, que apresentam como perfil étnico, em grande parte, homens e mulheres de descendência africana. O continente africano, assim como o Brasil, foi secularmente dilapidado. Na África, tragicamente, impera em grande medida regimes políticos frágeis e suscetíveis à corrupção endêmica. É esta a herança nefasta que queremos e projetamos para as gerações futuras brasileiras? Uma sociedade onde a impunidade, o racismo e o arrivismo são as faces da mesma moeda?




domingo, 5 de novembro de 2006

O custo das oligarquias




Jéferson Dantas



Nas primeiras décadas do século XVI a coroa portuguesa dividiu a sua nova colônia na América em quinze grandes trechos de terra que contornavam o litoral brasileiro, sistema que ficou conhecido como capitanias hereditárias. As capitanias hereditárias do ponto de vista social, econômico e político foi um total desastre. Além de ter concentrado enormes extensões de terra nas mãos de pouquíssimos donatários, representou a gênese perversa do latifúndio improdutivo numa terra em que, originariamente, civilizações autóctones extraíam sua subsistência da própria natureza. A lógica do mercantilismo europeu ou o pré-capitalismo teve no Brasil sua face perversa com a escravidão que durou mais de três séculos, situação que nos envergonha até os dias de hoje.

Todavia, os nichos sócio-culturais dos oligarcas continuam mais vivos do que nunca. Embora arrefecidos nas últimas eleições para cargos executivos no Brasil, as oligarquias regionais durante muitos séculos governaram e governam boa parte do Brasil. A truculência grotesca, favoritismo, clientelismo, paternalismo ou a ameaça sistemática aos seus desafetos, são as características mais evidentes deste gênero político nefasto e dasalentador. Se outrora as oligarquias rurais (coronelismo) chefiavam seus redutos eleitorais via voto do cabresto e outras artimanhas indecorosas, as oligarquias urbanas souberam muito bem se aproveitar dos anos de chumbo no Brasil através da conveniência com a tortura, repressão sistemática e delação em larga escala. Tanto as oligarquias rurais como as urbanas hoje se confundem. Ocupam o Congresso Nacional e mantém a mesma postura arrogante de seus descendentes seculares. Governam de costas para as populações empobrecidas. Oferecem migalhas em troca de seu empoderamento ad vitam aeternam.

Logo, o custo social das oligarquias é bem evidente. Entre outros aspectos, sepultam a liberdade de expressão, condenam a vivacidade das vozes dissonantes à humilhação pública e ao desterro. Submete a população empobrecida a uma condição cada vez mais paupérrima e ignorante. Anulam os projetos de ascensão social dos que mais necessitam. Os trogloditas de prenomes e sobrenomes que habitam esta terra há centenas de anos representam a imagem mais deprimente de uma nação que precisa crescer economicamente e socialmente apesar deles.

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Plano Diretor Participativo


Plano Diretor Participativo em risco (?)

Jéferson Dantas â



O pedido de demissão de seis secretários do executivo municipal de Florianópolis é um importante alerta para avaliarmos a reestruturação administrativa da capital catarinense. Mais do que uma exoneração coletiva, as disputas internas pelo poder denotam o estilo de governo de Dário Berger, bastante acostumado à centralização, prática desenvolvida quando prefeito de São José, na grande Florianópolis. Entretanto, Berger necessitará ter jogo de cintura na continuidade das discussões do Plano Diretor da Capital, tendo em vista que os movimentos sociais envolvidos – principalmente o Fórum do Maciço do Morro da Cruz - não arredarão o pé enquanto não forem devidamente ouvidos. Uma novidade que o atual prefeito municipal desconhecia, ou seja, a mobilização organizada da sociedade civil.
Também é verdade que os demissionários – e aqui cito dois em especial – não estavam nada confortáveis em suas funções. Rodolfo Pinto da Luz, secretário da Educação, provavelmente reconheceu as limitações do cargo ou a restrita abrangência de deliberações mais autônomas. Pinto da Luz tem uma trajetória política que não lhe permite arriscar compromissos partidários que possam afetar a sua imagem. Optou por projetos pessoais mais focalizados. Ildo Rosa, responsável pelo IPUF, embora tenha voltado atrás em sua decisão, alegou orçamento apertado e excesso de burocracia em sua pasta. Todavia, estava tendo uma atitude democrática na condução do Plano Diretor, ouvindo, sugerindo e participando de diversas assembléias coordenadas por lideranças comunitárias.

Logo, os desdobramentos da exoneração coletiva do executivo de Florianópolis só poderão ser percebidos nos próximos dias, quando o secretariado for recomposto. Cabe, porém, enfatizar a condução de um Plano Diretor Participativo calcado nas necessidades prementes de milhares de pessoas em situação de risco nos morros e encostas da capital (em torno de 30 mil, atualmente). Florianópolis possui especificidades geográficas e naturais que precisam ser respeitadas. Para que Berger consiga se fortalecer no Executivo, terá de ouvir a sociedade civil. Caso contrário sofrerá reveses incalculáveis em seu ambicioso projeto de escalada política.


â Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador do GTEC - Grupo de Trabalho Estudos do Currículo, da Comissão de Educação do Fórum do Maciço do Morro da Cruz E-mail: clioinsone@gmail.com

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

Projetos simplificados



Jéferson Dantas



Na reta final do segundo turno os dois candidatos à presidência da república brasileira ainda não manifestaram, claramente, seus projetos sociais. Acusações pessoais, maniqueísmo tosco, endemonização e tons desqualificatórios são destilados à revelia do eleitorado. Alckmin tem a seu favor os velhos caciques regionais, que não medirão esforços para convencer os eleitores indecisos no pleito de 29 de outubro. Lula ainda repousa na aura mítica que o levou ao poder em 2002, mas que não poderá se sustentar ad infinitum numa possível vitória no segundo turno.

Tanto Lula quanto Alckmin não farão grandes mudanças macroeconômicas. O comando tucano mexerá drasticamente no gerenciamento público – o chamado ‘choque de gestão, propalado por Alckmin -, já que sua agenda está intimamente associada ao reformismo neoliberal. Para o presidente Lula a reforma política passa a ser uma questão estratégica, o que poderá processar mudanças significativas na história do Partido dos Trabalhadores. Porém, uma coisa é certa: Alckmin e Lula não empolgam o eleitorado médio brasileiro. Há, inclusive, temores velados de que Lula, ganhando a eleição, terá enormes dificuldades para governar nos próximos quatro anos. Ou seja: rumores de golpismo no ar!

Os golpes contra a democracia acontecem, justamente, quando os mecanismos jurídicos existentes fracassam. Sempre há argumentações radicais e autoritárias reivindicando punições exemplares, exclusões, destituições e certo saudosismo auriverde. A polarização ideológica que se vê nesse momento histórico da política nacional revela ainda duas trajetórias distintas. Alckmin agrada em cheio as elites e parcela do eleitorado que aposta no ‘bom presidente’ que sabe representar o povo, isto é, o formato, a embalagem é mais importante que o conteúdo. Já Lula tem apoio dos mais pobres e para muitos ‘foi longe demais como presidente’. A endemonização de Lula por determinado segmento da imprensa não ajuda em nada a compreensão de seu significado político para o Brasil. Na longa e penosa consolidação democrática tupiniquim reinam os clichês envolvendo bandidos e mocinhos. Esquecem os polemistas de plantão que a nação brasileira é bem maior de que seus dilatados egos.

terça-feira, 10 de outubro de 2006

Um ex-cineasta formador de opinião e falsos polemistas!


Um ex-cineasta é o maior formador de opinião do país. Posa de jornalista e muita gente o leva a sério. Um outro articulista do semanário Veja - que escreve nas últimas páginas da revista - também gosta de ser levado a sério. Hoje convivemos com esses falsos polemistas! Gente sem caráter que ganha a vida desqualificando os outros com a maior naturalidade. A 'estratégia da desqualificação', aliás, é bem conhecida do tucanato. Não por acaso o ex-cineasta e o jornalista-marrom são defensores enfáticos da política neoliberal.
Em tempos de eleição, os falsos polemistas ganham ares de profetas, agradando a classe média classicamente influenciável. Está mais do que na hora de resgatar-se uma imprensa combativa e realmente preocupada com os interesses da sociedade. Se é que algum dia a grande mídia se interessou pelos incautos de olhares bovinos...

O Oligarca que gosta de desqualificar


O Senador Jorge Konder Bornhausen (PFL) - e toda a cúpula intelectualóide do PSDB/PFL - tem o feio costume de desqualificar seus desafetos. Governador biônico em Santa Catarina durante a ditadura militar (1978-1982), parece se ressentir dos tempos que podia utilizar as prerrogativas da Lei de Segurança Nacional (LSN). Naquela época nebulosa da história política brasileira, Bornhausen tinha como aliado o seu afilhado Esperidião Amin, Secretário de Obras de seu governo - a pasta mais bem servida de recursos públicos. A última pérola de Bornhausen (conhecido no meio político como 'alemão') foi essa:
O presidente do PFL, senador Jorge Bornhausen (SC), chamou nesta terça-feira o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de "mentiroso" ao reagir às críticas do petista contra o candidato Geraldo Alckmin (PSDB), feitas durante entrevista concedida esta manhã à Rádio Bandeirantes. Bornhausen disse à Folha Online que Lula vem mantendo uma versão mentirosa sobre a possibilidade de Alckmin privatizar empresas estatais como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal.
Formidável! Bornhausen acusa o presidente Lula de mentiroso! O oligarca agora posa de esteio da moralidade e da ética! Convenhamos, senador, é necessário muita pachorra para assumir esse papel que, efetivamente, não lhe cabe.