DUALISMO EDUCACIONAL E O
CURRÍCULO NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INTEGRAL
Jéferson Dantas[1]
Tratar
sobre o currículo escolar na perspectiva da educação integral exige de nós,
professores e pesquisadores, uma profunda análise histórica, tendo em vista que
a dualidade educacional que até hoje permanece em nosso país, é fruto de uma
imensa e intensa desigualdade social. O Estado Liberal brasileiro, ainda que
garanta constitucionalmente em seu artigo 205 que a educação é direito de todos
e dever do Estado e da família, oculta em sua formalidade uma realidade
concreta repleta de contradições, exclusões ou inclusões excludentes.
O
longo descaso com a educação pública no Brasil atravessou toda a República
Velha (1889-1930) e foi somente na década de 1930, durante a Era Vargas, que o
denominado ensino primário passou a ser parcialmente garantido pelo Estado. No
início da ditadura varguista em 1937, a nova Constituição do Estado Novo criou um duplo dualismo,
isto é, uma escola pública para os filhos da classe média que não conseguiam
entrar numa escola privada e uma escola pública voltada para as classes sociais
menos favorecidas, abreviadas numa educação primária-profissional.
Com
a redemocratização do Brasil em 1946 e a promulgação de nossa primeira LDB em
1961, a exclusão social apenas se agudizou, pois o nosso parque escolar não
acompanhava a crescente massa de trabalhadores nos centros urbanos, exigindo
maior número de instituições de ensino e a preparação adequada de professores. O
golpe civil-militar em 1964 sepultou de vez qualquer possibilidade de uma
reestruturação educacional efetivamente equânime e includente.
Após
novo processo de transição democrática a partir da década de 1980 e uma nova
Constituição em 1988, o Brasil se deparou com os efeitos adversos de um enorme
contingente populacional de analfabetos, por não ter realizado ou priorizado o
enfrentamento histórico da desigualdade social, da concentração de renda e da
permanência do dualismo educativo.
Na
década de 1990 houve a formulação da atual Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, aprovada e promulgada em dezembro de 1996 (LDBEN
9.394/1996), fruto de um embate entre o Fórum Nacional em Defesa da Escola
Pública e o lobby dos empresários da
educação. No que tange, especificamente, ao campo curricular da Educação
Básica, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), formulados no final do
primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, tornaram-se, em grande
medida, elaborações conceituais alheias ao que se discutia nas escolas e nos
sistemas municipais e estaduais de educação (já que tais sistemas também
possuíam suas próprias propostas curriculares). Além disso, havia claros desencontros
entre os PCNs e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) no que dizia respeito
à perspectiva formativa docente.
Assim,
ao abordarmos o tema do currículo na perspectiva da educação integral temos de
compreender, também, que não é suficiente que estudantes, sobretudo, fiquem
mais tempo na escola sem uma proposição política e pedagógica que não
ultrapasse os rudimentos da leitura e da escrita. Não é possível ambicionar
mudanças curriculares sem alterar as condições de trabalho de professores e
professoras, que ainda necessitam dedicar-se a mais de uma escola por jornada de
trabalho, configurando um quadro tenebroso de precarização estrutural.
Na
prática, em nível nacional, programas como o Mais Educação, instituído em 2007 durante o governo Lula,
tornaram-se o carro-chefe de uma perspectiva de formação em tempo integral de
estudantes da rede pública, especialmente daquelas unidades de ensino que
apresentavam baixíssimos desempenhos de proficiência no IDEB (Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica). Se, por um lado, o aumento do tempo na
escola pode significar um aprofundamento de experiências cotidianas
compartilhadas e o enriquecimento da vida intraescolar, não podemos perder de
vista que tal acolhimento aos estudantes, especialmente das classes populares,
não pode se transformar em mero atendimento, com sentido limitadamente
clientelístico. Nessa direção, o programa Mais
Educação tem se mostrado inepto diante das imensas demandas das escolas
públicas, já que ao não privilegiar a contratação de profissionais habilitados
e não remunerá-los de forma digna, acaba por reduzir sua ação a uma série de
atividades pedagógicas duvidosas do ponto de vista da apropriação dos
conhecimentos científicos produzidos pela humanidade.
Não
obstante, a discussão do “fator tempo” na escola está relacionada à própria
organização do trabalho pedagógico (OTP), que pode se dar de forma seriada ou
em ciclos, mas nunca dissociada de seu desenho curricular. Isto significa dizer
que ao tratarmos do currículo da educação básica não podemos olvidar de uma
pergunta central: o que queremos que as crianças e jovens se tornem em termos
de uma formação humana integral?
Logo,
diante da perspectiva política e teórica que defendemos aqui, a escola pública
integral não pode ser um espaço desprovido de intencionalidade e de um
consistente projeto pedagógico; não pode ser um espaço para “alívio da pobreza”,
como defendem os experts do campo da economia neoliberal, que não por acaso, são os
mentores das políticas educacionais para os países do capitalismo periférico.
Por outro lado, para não reprisarmos o discurso do “fatalismo pedagógico”,
consideramos que para obter avanços significativos em suas formulações
científicas, políticas e pedagógicas, um currículo na perspectiva da educação
integral necessita estar atenta aos seguintes aspectos: 1) desenvolver um PPP
que problematize as contradições e os desafios da classe trabalhadora no âmbito
da sociedade capitalista vigente, onde os diferentes campos epistemológicos
dialoguem por meio de uma perspectiva curricular que não dissocie o trabalho da
educação; 2) que o corpo docente tenha dedicação exclusiva para atender as
crianças e jovens das camadas populares, reforçando os laços afetivos com as
comunidades escolar e local e estabelecendo os engajamentos empíricos
necessários para que se torne uma comunidade investigativa; 3) que os diretores
escolares possam ser eleitos de forma democrática por toda a comunidade
escolar; 4) que todas as instâncias deliberativas da escola funcionem de forma
efetiva (Associação de Pais e Professores, Conselho Deliberativo, Grêmio Estudantil
e também o Conselho de Classe Participativo); 5) e, por fim, que a relação
entre a escola e a família não se dê apenas de forma pontual, mas que se
constitua como uma ação estratégica objetivando o fortalecimento dos vínculos
pedagógicos e afetivos, assim como a sensação plena de pertencimento a todos os
espaços de socialização da instituição escolar.
[1]
Historiador e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Professor no Departamento de Estudos Especializados em Educação do
Centro de Ciências da Educação (EED/CED/UFSC). Membro do Conselho Municipal de
Educação na cidade de Florianópolis/SC (2014-2016). E-mail: jeferson.dantas@ufsc.br.