sexta-feira, 11 de novembro de 2011

vira-latas


Antes, nossas bocas despertavam muito antes da aurora e os nossos corpos se impregnavam de sinfonias angélicas sob as peles incandescentes. E olhávamos para o empíreo e tínhamos certeza de que o catarro da discórdia dava vazão para um firmamento verde-esmeralda... e esse era o pulmão do mundo imaginado... uma transcendência límpida que ardia nossos olhos e lacrimejávamos como se estivéssemos na dimensão infante dos primeiros desejos.

Tudo se desmanchava diante dos horários fixos de raros prazeres. O despertar do transe era de uma violência singular. Ficávamos grudados e não queríamos sair do leito. Os exploradores só existem para nos deixar com essa cara de vira-latas abatidos...

esquecimento


O esquecimento é pior do que a morte. No fundo de nossa ruína este foi o elevado preço do mergulho de nossas vozes. Se éramos inquietos e voadores; se éramos jovens e festivos; se éramos plenos e mordazes, isso foi se extinguindo. O esquecimento é a última etapa de um auto-abandono. Aos poucos tudo é terra arrasada.

palimpsestos [1]


Já não falam. Gritam! Precisam ser alucinadamente ouvidos; precisam se certificar de que serão escutados. A conversa pobre, gírias padronizadas e todos os estereótipos possíveis. E, assim como asnos, viajam no autobus-náufrago com a lentidão de ‘orelhas chuvosas’. O autobus agora é densa veia de cinza e sangue coagulado! Aquela juventude-esmeralda e os cabelos multicores em névoa me parecem fantasmas desplugados e literalmente desgovernados.

A jovem nua que respira o ar fresco e ascende entre a miséria homogênea de menininhas sem ardor traz as mãos crispadas sobre um punhal de aves sem nome...E sua dor angelical é imensa como o deus-silêncio de Spinoza. E ela trepa veloz sobre o meu falo-fogo e mija quente em minhas pernas...e desgovernados seguimos na marcha onírica.

pampa

a pampa dos versos e das milongas invernais
não é por certo
a deletéria paisagem vil
da infância rude

a pampa invade a
alma residente
em ilha de degredados

o sonho presente
de um tempo desnecessário
e eu não tinha mais
a compostura dos néscios!

esta fronteira insiste
em traduzir a pampa da lucidez
o campo aberto
e noites encordoadas na cordeona
andaluz!

a visitante

longo trajeto que lembrava corredores de hospitais, enfim, revelava a porta do meu apartamento. passos apressados atrás de mim e, de repente, um cheiro aziago de alguma bebida alcoólica misturada com cigarro barato mentolado expressaram palavras intraduzíveis da boca feminil.

chorava e gritava desesperada e compreendi que deveria convidá-la para entrar. sentou-se no sofá da sala com o corpo num ângulo de quarenta e cinco graus. preparei um café forte e quando retornei para sala, já adormecia. só então pude percebê-la. os olhos graúdos, de íris muito escura. pernas torneadas e seios ocultados por uma mini-blusa. os cabelos encaracolados e o rosto em fantasia, pois que a maquiagem fora desfeita pelas lágrimas. e sem contrato com o tempo, retirei suas botas e sua saia sem qualquer reação, já que embriagada, apenas resmungava expressões ininteligíveis. por fim, também adormeci. quando acordei, já não estava no sofá. senti que havia perdido algo importante; como se o ‘ato de cuidar’ fosse algo tão pouco presente em minha existência. recolhi as xícaras e o bule de café. enfiei tudo na pia, que há muito não via água sobre aquela louça acumulada. 

já era tarde. momento em que a madrugada fica estranhamente silenciosa e mesmo o coração se aquieta... nebuloso e resignado! ao chegar ao quarto lá estava ela. deitada sobre o colchão amarelo;  comprimiu seu corpo ao meu e pude vislumbrar os mamilos muito róseos; e tinha um sorriso danado que desmontava a sisudez do quarto de paredes descascadas. 

a noite se prolongara e nada sabia daquela mulher; e nada queria saber de sua vida. e eu a tomei com tamanha fúria, que passei a desejá-la cada vez mais, sem saber sequer o seu nome. e já me esperava desavergonhadamente na entrada do prédio. e ia tirando a roupa, apalpando-me com suas ágeis mãos e dedos muito delicados. e sua língua brincava no meu corpo até à exaustão. 

quando sumiu para sempre, não sofri.  as vestes íntimas no guarda-roupa eram as certezas de sua repentina aparição; nunca reconheceria sua grafia ou sonhos; jamais saberia redesenhá-la ou compreender o que passara conosco naqueles dias de trancafio, onde a fome, a sede e a serenidade eram as únicas leis! 

E me agarrei ao regozijo passado, como lasca fincada n’alma!