REFERÊNCIA: SNYDER,
Timothy. Sobre a Tirania: vinte
lições do século XX para o presente. São Paulo: Cia das Letras, 2017, 168 p.
O
historiador estadunidense Timothy Snyder redigiu a obra Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente, tendo
como leitmotiv os desdobramentos das
últimas eleições nos EUA, em que o republicano Donald Trump foi vencedor. Suas
breves lições, num formato que se assemelha ao dos livros de autoajuda, podem
muito bem servir de referência para o Brasil, onde a democracia foi jugulada e
as instituições que deveriam zelar pela justiça social foram completamente
partidarizadas. O lawfare – o uso
indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política – vem se
tornando estrutural em nosso país desde o golpe midiático-jurídico-parlamentar
de 2016.
Snyder
chama a atenção para as bases do conhecimento histórico, considerando que a
História pode não se repetir, mas ela ensina. Assim, já em sua primeira lição aponta que não se deve
obedecer por antecipação, pois isso representaria uma verdadeira tragédia
política, tendo em vista que a servidão voluntária alimentou regimes
totalitários como o fascismo e o nazismo na Itália e na Alemanha,
respectivamente. Vinculada a esta reflexão traz à baila as obras distópicas de
Ray Bradbury (1920-2012) e George Orwell (1903-1950) para asseverar que um dos
projetos dos regimes totalitários ou tirânicos é repetir ad nauseam as mesmas palavras e frases que aparecem nos meios de
comunicação diários, para que sejam aceitas em detrimento de um quadro
referencial maior. Em outras palavras, “ignorar o mundo real dá início à
criação de um antimundo ficcional” (SNYDER, 2017, p. 64). Como exemplos dessa
assertiva, os memes, a autoverdade, a
auto-referência e uma campanha eleitoral subterrânea construída por meio das fake news nas redes sociais, foram a
tônica do processo eleitoral no Brasil em 2018.
Além
disso, recomenda que as pessoas se encontrem mais presencialmente e reforcem os
laços de coletividade ou coleguismo enfraquecidos pelas redes sociais. Afirma
também que, diante das ameaças às conquistas sociais,
[...]
duas fronteiras sejam cruzadas. Primeiro, as ideias a respeito de mudança têm
de envolver pessoas com vários históricos e que não concordem em tudo. Segundo,
as pessoas precisam se encontrar em lugares que não são seus lares e com gente
que antes não fazia parte de seu grupo de amigos. Um protesto pode ser
organizado por meio de redes sociais, porém nada é real se não acabar nas ruas.
Se os tiranos não percebem consequência alguma para seus atos no mundo tridimensional,
nada vai mudar (SNYDER, 2017, p. 81).
Snyder
nos convida a combater a política da
inevitabilidade, que impõe à humanidade a inércia e o desconhecimento da
História, assim como o combate à política
da eternidade, calcada em reducionismos e maniqueísmos políticos; sua
aposta reside nas novas gerações, entendendo que os sujeitos históricos
posicionados em favor da emancipação humana têm muita responsabilidade nestes
tempos de desconfiança, anestesiamento e apatia generalizadas.
Como
profundo conhecedor da história do holocausto, Snyder alerta-nos de que a
[...]
história tem o poder de familiarizar e também de advertir. (...). No começo do
século XX, tal como no começo do XXI, essas esperanças foram ameaçadas por
novas visões políticas de massa em que um líder ou um partido afirmavam
representar diretamente a vontade do povo. As democracias europeias descambaram
para o autoritarismo de direita ou para o fascismo nas décadas de 1920 e 1930.
(...). A história europeia do século XX nos mostra que as sociedades podem
ruir, que as democracias podem ruir, que as democracias podem entrar em
colapso, que a ética pode ser aniquilada e que os homens comuns podem se ver
diante de valas comuns com armas nas mãos (SNYDER, 2017, p. 13).
Os
falsos mitos podem ser construídos em contextos assim, ou seja, aparentemente
inspiram vontades populares, como o combate à violência, à corrupção, à
delinquência juvenil, etc.. Todavia, os germens da tirania defendidos por esses
sujeitos afeitos a um instinto primitivo apenas conseguem trazer à tona
recalques e valores morais duvidosos.
O mais surpreendente disso, conforme estudos
teóricos de Snyder, é que as pessoas são receptivas às novas regras num
ambiente ‘novo’; mais surpreendente ainda: mostram-se capazes de maltratar e
matar outros indivíduos a serviço de algum propósito considerado ‘novo’, se o
mesmo for instituído e balizado por uma determinada autoridade pretensamente
legítima.
Logo,
apoiando-nos nos estudos de Snyder, tudo corrobora para que esse governo de viés
autoritário/ultraconservador no Brasil ofereça carta branca para os aparelhos
ou agências de repressão para executarem todas as formas de tirania possíveis,
tendo como alvos característicos os que sempre estiveram mais vulneráveis,
socialmente (pobres, negros, mulheres, comunidade LGBTQ+).
Ao redigir
uma pequena obra sem grandes pretensões teóricas, Snyder contribui de forma
didática e professoral para a compreensão dos descaminhos dos governos
sintonizados com grupos religiosos (neopentecostais, sobretudo), milicianos,
latifundiários do agronegócio e toda ordem ou séquito de homens e mulheres ‘de
bem’ que ao se tornarem servos voluntários do combate ao comunismo e aos
pretensos professores doutrinadores marxistas nas escolas públicas, esteiam
valores morais densamente preconceituosos, insanos e estereotipados.