OS “HERDEIROS” E A PERPETUAÇÃO DAS DESIGUALDADES
ESCOLARES
A obra “Os herdeiros:
os estudantes e a cultura”, de Pierre Bourdieu (1930-2002) e Jean-Claude
Passeron (1930-), foi publicada na França em 1964 e traduzida no ano passado
pela professora Doutora Ione Ribeiro Valle, do Centro de Ciências da Educação
da Universidade Federal de Santa Catarina, e por Nilton Valle. O que uma
publicação de meio século ainda tem para nos dizer sobre os sistemas de ensino
e a distribuição desigual das oportunidades escolares? Como podemos fazer tais
interlocuções/associações teóricas e empíricas com o Brasil, reconhecidamente
um país em que as desigualdades escolares são flagrantes e históricas?
Os sociólogos
franceses são taxativos ao afirmarem que os sistemas escolares operam de forma
objetiva uma eliminação “ainda mais total quando se vai em direção às classes
mais desfavorecidas”. Em outras palavras, dentre todos os fatores de
diferenciação social ou de distinção simbólica, “a origem social é sem dúvida
aquela cuja influência exerce-se mais fortemente sobre o meio estudantil, mais
fortemente em todo caso que o sexo e a idade e sobretudo mais do que um outro
fator claramente percebido como a aflição religiosa por exemplo”.
Por outro lado, numa
distribuição desigual das oportunidades escolares aliada à origem social, as
mulheres formalmente estariam em condições semelhantes aos homens, segundo os
autores. Todavia, a desvantagem das mulheres aparece mais evidente nas classes
baixas: “Se globalmente, as moças têm pouco mais de oito chances em cem de
acesso ao ensino superior, os rapazes têm dez; a diferença é maior na parte baixa
da escala social e tende a diminuir ou anular-se nos quadros superiores e nos
quadros médios”.
Mas, é na tese
central dos autores, ou seja, de que a herança cultural favorece uma adaptação
menos traumática nos bancos escolares aos filhos das elites econômicas, que se
configuram os distintos handicaps sociais,
ainda que os sistemas de ensino procurem mascarar ao máximo tais distinções:
“Os estudantes mais favorecidos não devem somente ao seu meio de origem
hábitos, treinamentos e atitudes aplicáveis diretamente às suas tarefas
escolares; eles também herdam saberes e um saber-fazer, gostos e um ‘bom gosto’
cuja rentabilidade escolar, por ser indireta, é ainda mais certa”.
Ainda que nos dias
de hoje as informações circulem de maneira célere no mundo infoviário, a escola
continua sendo um importante espaço de acesso à cultura e ao conhecimento
científico produzido pela humanidade. A escola teria de ser o território da
democratização da cultura, mas invés disso, de acordo com Bourdieu e Passeron,
a mesma desvaloriza e esvazia os conteúdos escolarizados/científicos, aquilatando
a cultura herdada dos bem nascidos. Nada mais contraditório e aterrador se não
fosse, dadas as evidências, a mais pura e preocupante verdade. Além disso, a
escola inculcaria desde a infância um ideal incoerente, isto é, o estímulo à
competição individual.
Mas, este é apenas
um dos aspectos apresentados pelos sociólogos, já que as suas análises avançam
em direção à relação entre estudantes e professores no âmbito universitário,
desvelando os jogos acadêmicos, os estereótipos estudantis, as expectativas
professorais e as diferenças existentes entre as denominadas ‘universidades de
província’ e ‘universidades de metrópole’. Para os autores, “se é difícil
reconhecer o que divide e o que realmente une os estudantes, se é difícil fazer
parte do jogo e ser sério em seus engajamentos, suas convicções e seus
exercícios, é porque as ideologias e as imagens que suscita a relação
tradicional com a cultura condenam a prática universitária, professoral ou
estudantil, a apreender o real somente indiretamente e simbolicamente, isto é,
através do véu da ilusão retórica”.
À guisa de
conclusão, Bourdieu e Passeron, apontam que a cultura escolar é uma cultura de
classe, onde os estudantes das classes cultas são os mais preparados para se
adaptar a um sistema de ensino de exigências difusas e implícitas. Fica-nos,
por conseguinte, reflexões imperiosas no que concerne aos desafios de,
efetivamente, democratizarmos a educação básica e o ensino superior em nosso
país. Isto vai se tornando mais dramático quando se percebe que o esvaziamento
dos conteúdos escolares associado a uma formação precária nas diferentes
Licenciaturas respinga, justamente, naqueles que mais precisariam se apropriar
dos conhecimentos científicos.
PARA SABER MAIS:
BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Traduzido por Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Florianópolis:
EDUFSC, 2014.