sexta-feira, 26 de julho de 2019

SOBRE A TIRANIA: REFLEXÕES SOBRE O TEMPO PRESENTE



REFERÊNCIA: SNYDER, Timothy. Sobre a Tirania: vinte lições do século XX para o presente. São Paulo: Cia das Letras, 2017, 168 p.

O historiador estadunidense Timothy Snyder redigiu a obra Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente, tendo como leitmotiv os desdobramentos das últimas eleições nos EUA, em que o republicano Donald Trump foi vencedor. Suas breves lições, num formato que se assemelha ao dos livros de autoajuda, podem muito bem servir de referência para o Brasil, onde a democracia foi jugulada e as instituições que deveriam zelar pela justiça social foram completamente partidarizadas. O lawfare – o uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política – vem se tornando estrutural em nosso país desde o golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016.

Snyder chama a atenção para as bases do conhecimento histórico, considerando que a História pode não se repetir, mas ela ensina. Assim, já em sua primeira lição aponta que não se deve obedecer por antecipação, pois isso representaria uma verdadeira tragédia política, tendo em vista que a servidão voluntária alimentou regimes totalitários como o fascismo e o nazismo na Itália e na Alemanha, respectivamente. Vinculada a esta reflexão traz à baila as obras distópicas de Ray Bradbury (1920-2012) e George Orwell (1903-1950) para asseverar que um dos projetos dos regimes totalitários ou tirânicos é repetir ad nauseam as mesmas palavras e frases que aparecem nos meios de comunicação diários, para que sejam aceitas em detrimento de um quadro referencial maior. Em outras palavras, “ignorar o mundo real dá início à criação de um antimundo ficcional” (SNYDER, 2017, p. 64). Como exemplos dessa assertiva, os memes, a autoverdade, a auto-referência e uma campanha eleitoral subterrânea construída por meio das fake news nas redes sociais, foram a tônica do processo eleitoral no Brasil em 2018.

Além disso, recomenda que as pessoas se encontrem mais presencialmente e reforcem os laços de coletividade ou coleguismo enfraquecidos pelas redes sociais. Afirma também que, diante das ameaças às conquistas sociais,

[...] duas fronteiras sejam cruzadas. Primeiro, as ideias a respeito de mudança têm de envolver pessoas com vários históricos e que não concordem em tudo. Segundo, as pessoas precisam se encontrar em lugares que não são seus lares e com gente que antes não fazia parte de seu grupo de amigos. Um protesto pode ser organizado por meio de redes sociais, porém nada é real se não acabar nas ruas. Se os tiranos não percebem consequência alguma para seus atos no mundo tridimensional, nada vai mudar (SNYDER, 2017, p. 81).

Snyder nos convida a combater a política da inevitabilidade, que impõe à humanidade a inércia e o desconhecimento da História, assim como o combate à política da eternidade, calcada em reducionismos e maniqueísmos políticos; sua aposta reside nas novas gerações, entendendo que os sujeitos históricos posicionados em favor da emancipação humana têm muita responsabilidade nestes tempos de desconfiança, anestesiamento e apatia generalizadas.

Como profundo conhecedor da história do holocausto, Snyder alerta-nos de que a

[...] história tem o poder de familiarizar e também de advertir. (...). No começo do século XX, tal como no começo do XXI, essas esperanças foram ameaçadas por novas visões políticas de massa em que um líder ou um partido afirmavam representar diretamente a vontade do povo. As democracias europeias descambaram para o autoritarismo de direita ou para o fascismo nas décadas de 1920 e 1930. (...). A história europeia do século XX nos mostra que as sociedades podem ruir, que as democracias podem ruir, que as democracias podem entrar em colapso, que a ética pode ser aniquilada e que os homens comuns podem se ver diante de valas comuns com armas nas mãos (SNYDER, 2017, p. 13).

Os falsos mitos podem ser construídos em contextos assim, ou seja, aparentemente inspiram vontades populares, como o combate à violência, à corrupção, à delinquência juvenil, etc.. Todavia, os germens da tirania defendidos por esses sujeitos afeitos a um instinto primitivo apenas conseguem trazer à tona recalques e valores morais duvidosos.

 O mais surpreendente disso, conforme estudos teóricos de Snyder, é que as pessoas são receptivas às novas regras num ambiente ‘novo’; mais surpreendente ainda: mostram-se capazes de maltratar e matar outros indivíduos a serviço de algum propósito considerado ‘novo’, se o mesmo for instituído e balizado por uma determinada autoridade pretensamente legítima.

Logo, apoiando-nos nos estudos de Snyder, tudo corrobora para que esse governo de viés autoritário/ultraconservador no Brasil ofereça carta branca para os aparelhos ou agências de repressão para executarem todas as formas de tirania possíveis, tendo como alvos característicos os que sempre estiveram mais vulneráveis, socialmente (pobres, negros, mulheres, comunidade LGBTQ+).

Ao redigir uma pequena obra sem grandes pretensões teóricas, Snyder contribui de forma didática e professoral para a compreensão dos descaminhos dos governos sintonizados com grupos religiosos (neopentecostais, sobretudo), milicianos, latifundiários do agronegócio e toda ordem ou séquito de homens e mulheres ‘de bem’ que ao se tornarem servos voluntários do combate ao comunismo e aos pretensos professores doutrinadores marxistas nas escolas públicas, esteiam valores morais densamente preconceituosos, insanos e estereotipados.