segunda-feira, 9 de julho de 2007

Entre fados e insônias


É quando a noite chega e eu me afasto de tudo que me enoja, que vislumbro o contorno de teu corpo, num local em que nunca estive. E são noites de arrepio e desejo; e sinto que tudo isso é muito caro pra mim. Foram anos de cultura cristã a crispar meu corpo e me infernizar com o mea culpa. Mas, eis que tu surges, assim, sem nenhuma exigência. E queres apenas o colo, o carinho nos cabelos e o beijo eterno de lábios.


Nem a secura dos olhos pouco serenos te acuaram. E esperaste até o último momento. E carregavas frutas frescas em tua própria roupa orvalhada. E assim caminhamos pelas veredas arborizadas e não tínhamos mais pressa. E a completude era tamanha que poderíamos ali mesmo abandonar o mundo.


E foi o que fizemos.

Quem sabe amanhã...


Quem sabe amanhã eu aprenda a dançar... quem sabe amanhã eu decida escrever o meu livro de romances e deixe de fumar... quem sabe amanhã eu tenha tanta energia e disposição para pedir demissão daquele emprego que me consome as forças e me corrói a alma criadora... quem sabe?


Quem sabe eu deixe de mentir e me lamentar. Quem sabe eu aprenda a tocar um instrumento musical e me dedique à boemia sem remorsos! Quem sabe eu deixe de ser generoso e tolo e abandone, de fato, todos/as que me pedem favores e ganham seus louros às minhas custas!


Quem sabe?


Quem sabe eu discuta sério com aqueles/as burocratas empedernidos que ocupam os espaços públicos como se estes lhe pertencessem e planeje alguma afronta de dimensões maiores?


Quem sabe consiga aprender uma nova canção. E possa ver pássaros multicores na outra estação e reencontrar a poesia dos anos passados.


Quem sabe o mendigo é mais pleno do que eu. E lembro de uma canção de Buarque: "Nós gatos já nascemos pobres, porém, já nascemos livres!"


Quem sabe amanhã eu também me liberte?


Quem sabe?

O que importa?


O que importa agora se teus olhos cabisbaixos não respondem ao singelo apelo de um chamado; o que importa agora que eu saiba de teus secretos planos trancafiados, exigindo desculpas veladas; o que importa os anos modorrentos debaixo de tantas culpas e desenganos, como se uma força externa, mágica e estranha, pudesse te salvar?


O que importa se estás surda para me ouvires na escuridão do quarto; se ontem ainda choravas quieta e dizias palavras ininteligíveis e rias por dentro como quem faz uma molecagem atroz; o que importa o acinzentado de teus olhos mais distantes e mais opacos nos invernos do sul;


Eu posso te dizer agora que pouco importa a tua fúria e o teu desejo. Porque teu corpo e languidez foram apenas lampejos! Porque a muralha de teu corpo é um flagelo do qual não me amena e tampouco me absorve.


E eram escadarias tuas argumentações de boteco. Um jorro de pura e transbordante fluidez de passos nas nuvens. Nefelibata como te intitulavas, como se isso pudesse resolver tua cólera e o pouco sorriso. Economizavas até nisso.


E agora queres saber por que não te procuro? Por que deixei de escrever ou telefonar? Por que abandonei meu estado de miséria? Por que passei a valorizar minha existência? Pois bem, frágil aurora, vá procurar o que está distante e envolto em névoas. Eu estarei tranqüilo, passeando com meus pedregulhos de escritos e apostando em algo superior ao que definiste como inexorável.