segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

O futuro das universidades brasileiras

Parece ser uma tendência na América Latina... a compra de universidades privadas falidas por grandes mercados educacionais, principalmente provenientes dos EUA. Com o sucateamento das universidades públicas, talvez num futuro não muito distante, estaremos sob o jugo dos "empresários da educação". Na Argentina e México, apenas para citar dois exemplos, já é possível vislumbrar aquele cenário tão comum nos filmes de Hollywood: um professor para cento e cinqüenta estudantes. Em outras palavras, a idéia de sala de aula vai se ressignificar. Serão seminários, aulas inaugurais, com poucas intervenções pedagógicas dos educadores e o distanciamento cada vez maior entre mestres e educandos. O embrutecimento das relações pedagógicas se instaura como algo naturalizado, típico do ideário burguês.

A reforma universitária no Brasil e a compra da universidade Anhembi Morumbi vem apenas reforçar um perigoso processo de inculcação de valores ideológicos, tendo como leitmotiv a lógica do empreendedorismo a toda prova. Educadores de todo o Brasil, uni-vos!

Como diria Raulzito...


Revista Caros Amigos, Edição 104

O dólar deles paga o nosso mingau


O grupo norte-americano Laureate Education Inc., que administra instituições de ensino superior e a distância nos Estados Unidos e em mais catorze países da Europa, Ásia e América Latina, anunciou no início de dezembro a compra de 51 por cento da universidade brasileira Anhembi Morumbi. A transação, de 69 milhões de dólares, transforma a instituição na primeira universidade do país com capital majoritário estrangeiro. A Anhembi Morumbi tem hoje 27.000 alunos distribuídos em quatro campi na cidade de São Paulo, e faturou 52,8 milhões de reais em 2004. Esse lucrativo aparato educacional agora está sob o comando da Laureate, que é administrada por um grupo de altos executivos, alguns com experiência na Nasa e em companhias energéticas, e também faturou um bocado em 2003: algo em torno de 470 milhões de dólares. Para Roberto Rodríguez Gómez, professor da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), que realizou um estudo sobre a atuação da Laureate no país – a empresa tem 80 por cento da Universidade do Vale do México (UVM) –, "ela está principalmente orientada à execução de lucros. Qualquer outro propósito depende desse primeiro objetivo". A Laureate começou suas atividades em 1979, com outro nome: Sylvan Education Solutions.
De 1999 até 2005, a expansão da Sylvan (cujo nome foi mudado para Laureate em 2004) foi rápida e enorme. 4.500 alunos no primeiro ano, hoje beira os 215.000. Para
Gómez, "os lucros das operações internacionais são direcionados à própria expansão da rede. Isso valoriza o empreendimento e aumenta as ações da empresa na Bolsa de Nova York. É uma valorização de ativos". Ao adquirir a UVM mexicana em 2000, a Laureate construiu seis campi em quatro anos. "A universidade comprada começa a crescer e adquirir pequenas faculdades pelo país. Aí, a lei tem de regular", explica Gómez. A maior motivação da Anhembi Morumbi para assinar a "parceria" com a Laureate foi encontrar uma alternativa à queda nos negócios da universidade. "A oferta de vagas está muito grande", diz Gabriel Mário Rodrigues, reitor da Anhembi Morumbi, mostrando um gráfico com a oscilação de seu negócio. "Já observamos aumento na procura para o vestibular após o anúncio da parceria", comemora. O reitor afirma que a qualidade do ensino não cairá com a massificação, e explica que se pode constatar a manutenção da qualidade pelo aumento no número de matrículas. O raciocínio segue a linha da lei da oferta e procura: se as pessoas se matriculam é porque a universidade é boa; se elas não demonstram interesse, o ensino é ruim. Para Jairo Jorge, secretário executivo do Ministério da Educação (MEC), a explicação é questionável. "Esse pessoal pensa a educação como se fosse padaria: o cara vai lá e compra o pãozinho. Se não gostou, no outro dia não compra mais", alfineta. "Os estudantes e a sociedade só vão perceber que aquela instituição não
tem qualidade muitos anos depois, quando o aluno já está avançado no curso ou quando se forma um péssimo profissional." A venda parcial da Anhembi mexe também em outro vespeiro: a cultura nacional. Segundo o reitor, uma das condições da "aliança" é a "preservação dos valores culturais e da cultura brasileira". Embora seja outra a experiência vivida no México.
"Não há nenhuma preocupação com a cultura do país, mas sim de implantar a cultura da globalização", conta Gómez. O secretário do MEC alerta que o ensino superior "deve estar vinculado a um projeto de nação baseado na identidade nacional e cultural". E prevê que muito em breve haverá uma batalha jurídica entre a Laureate/Anhembi e o MEC. Isso porque, segundo o projeto da Reforma Universitária que está para ser votado, a participação estrangeira na educação nacional ficará restrita ao máximo de 30 por cento. Já no entender da reitoria da Anhembi, o negócio não corre riscos e, desde que as coisas "sejam transparentes e os valores dos países respeitados, tanto faz quem é o dono". Mas, como esse parágrafo da reforma ainda nem foi votado, as cartas podem mudar. É nessa hora que o lobby surge. "Eu creio que com os deputados será feito lobby, aqui não fizeram porque não necessitaram, a lei os favorecia", avisa, do México, o professor Gómez. Na visão do secretário Jairo, o lobby do setor privado deve mesmo acontecer: "O que temos que fazer é evitar que isso ocorra nas catacumbas do Poder Legislativo".

Em homenagem às três poetas, que muito admiro. Do livro "A precariedade do(e) ser" (2005-200?)

é quando
cansado
e sem mais
crítica
recolho-me ao quarto
das tempestades.

lá o sono é
promessa.
e vestido de
quimera
triunfo sobre a morte.

as três poetas
ébrias
as quais me junto
sem descanso
sabem das coisas
que se sente.

e era
assim.
a velocidade
das coisas
num tempo
esquisito
sem flores e
encantos.

Do projeto literário "Com as duas patas no peito" (2004)

XVI

Com as duas patas no
Peito.
Já não há
Fôlego.

Todo dia é um
Arraste de pernas
Que pesam como
Vergalhões de
Trocentas
Toneladas.

Com as duas patas no peito,
Correr já
Não é necessário.

E só se via o vulto
Da mulher
Durante a noite
Embaçada.

Durante anos leste
Mais de quinhentos
Livros fantásticos
E pensaste
Que isto seria
Suficiente.

Agora,
Diante desta barbárie
De dentes e insígnias,
Exércitos comandam
Fronteiras
De frágeis continentes.

Tenho duas patas no peito.
Unhas e pêlos na face.
Arranhões que cortam
Meu corpo
De algumas décadas.

E o vaticínio dos papas
Ou dos profetas dos mass-media
Não garantem
Se vou comer amanhã.


Eu poderia,
Simplesmente
Mendigar nas auroras primaveris
E morrer à míngua
Como qualquer indigente
Desta pólis-ilha.

Combinando versos
Com adjetivações sublimes
E derivações rítmicas,
Não te levarão a nada.

Nesta selva pedregosa,
Tua mortalha
São as vestes da
Infinda batalha que
Travas com inimigos
E travestidos amigos.

E a nosofobia que
Te afeta no declínio
De cada restolho de sol,
Torna-se um jorro de
Clarividência contínua,
Como se tua carne
Fosse atravessada por lanças
Analgésicas.

Eu pediria aquele
Beijo sempre adiado,
A maçã meio mordida,
Mas com marcas
Pontiagudas de tuas presas
E resquícios de tua saliva morna.

Duas patas no peito.
Um adormecer
Em gélida noite de conflitos.
O que fazer?
Esquecer que existo?
Chutar a cara dos hipócritas?
Realizar o atentado do ano?
Puxar o tapete daquela autoridade
Empedernida?
Catarrar na catraca dos
Autocarros?

Amanhã,
Com que roupa eu vou
Para o velório das
Almas sonâmbulas?
Com que roupa eu vou
Para enfrentar as ruas
Da cidade?

O lusco-fusco do
Entardecer,
As pontes como
Metáforas,
Integração alquebrada
Pelas intenções canalhas
Do poder res publico.

Oh, coração inerte!
Por que agora recusa-te a
Bater, se neste
Flagelo já degelas
Minha frieza empertigada?
Por que não respondes
Aos eletrochoques
Da medicina convencional,
Que sempre nos ensinou a morrer
Resignados, tal como o Vaticano
Nos educou nos bancos escolares?

Oh, coração caduco!
Logo agora, que fiz a
Viagem invertida e fiz-me
Menino,
Trazendo à tona para os incautos bovinos
Os questionamentos essenciais
Desta experiência terrestre?

Duas patas no peito.
Unhas e Pêlos em minha face.
Teria dito “fechem as cortinas”,
Antes daquele golpe de misericórdia.

E, se porventura,
Pensares que este embate
Entre Eros e Tânatos
Já está por demais desfigurado, típico
Clichê shakesperiano,
Não esqueça deste tormento:
Vivemos o que é possível, diante
Da insuportável e constante proximidade
Do n(v)osso desaparecimento!

Do projeto literário "Das imperfeições" (1999)

Das Imperfeições


eu
precisava
chorar.

tu
precisavas
chorar.

tu
me consolavas,
menina.

eu
tinha
esse jeito
tosco
de quem
não gosta
de nada.

me
ensinaste
a
simplicidade.

eu
precisava
chorar.

[...]


sorriu
por ter lhe
confiado
meus escritos
do fundo
do poço.


e,
lembrei
de minha
mãe de
novo.

estas
festas de fim-de-ano
trazem à
tona
tanta coisa estranha...

[...]


este tom grave
de minhas palavras
deixaram
boquiabertas
as
meninas ingênuas.
e, retive, eventos
que me pareciam
estranhas
imagens.
desconhecia
minha serenidade
e a bondade.

passei estes anos
descobrindo
coisas perigosas...
perigosas demais
para quem
acredita
ter a chave
do universo.

ontem,
podia ter chovido.
hoje
também.

tenho dormido
tarde.
lido os livros
de caio fernando abreu
e escutado músicas
do sul.

a combinação literária
das raízes
com as músicas
nativas, remetem-me
ao ar
dos campos,
ao cheiro
de bosta
de cavalo,
ao meu avô ermelino.
sinto saudades
desta plenitude
da infância, que
já se desbotou
com o tempo.

perdi
minha pureza
e tenho medo
do que posso
me transformar.

é por
isso que converso
com o mano.
ele me diz que
faz o jogo
do sistema para poder
sobreviver.
e eu
também.

na verdade
queremos
sempre ter um
bom pretexto
para conversarmos
sobre
o
que nos incomoda.

o mano compra
muitos livros.
a estante
suporta
o universo literário
em que me
prendo
e ainda não compreendo.

antes,
imaginava
que a
literatura
era mera erudição,
apenas uma
maneira de
não ser
tapado.
pura
tolice.

e se escrevemos,
é porque
não temos
outra arma
senão a nossa
língua,
a palavra,
o verbo,
o falo...

falamos
de
nossas gurias
com aquele entusiasmo
de homens
que amam.
não é mero exercício
de virilidade.

[...]

sei
que temos e
teremos
a
habilidade
para nos
afastarmos
de pessoas
inconvenientes.

sempre
tem
aquele(a)
que te
aborrece com
memórias
de tempos
idos e (mal) vividos,
com o sorriso
da
maldade
no
canto dos
lábios.

prefiro ler
os livros
da estante.

acompanha-me
o chimarrão
nas horas
em que varo
a madrugada.
são nestes instantes
em que
mais crio.

vejo
fragmentos
de gente
nas ruas.
ninguém tem
prazer.
o corpo da menina
inda adolescente
é muito
jovem para
iscas sacanas.

por todos
os lados
os mais
imbecis
outdoors...
vendem tudo:
amor, sexo, violência,
informação, conhecimento,
políticos, sabonetes,
preservativos,
clínicas médicas,
etc. etc. etc.

“do que tens medo?” –
ela me pergunta.
“sou um bicho
esquisito” –
respondo.
e,
acaricio
as suas coxas,
e a flor
molhada orvalha
os meus dedos
saltitantes.

tenho medo
de muitas coisas.
mano me diz
que escrever
é um ato
de coragem.
só isso
é o bastante.

gosto
de tomar banho
antes de dormir.
é uma
sensação
de pureza
muito particular.

devo encerrar a
desdita
de minhas imperfeições
obscuras.
quero beijar
a
face
de meu único
amigo.
amigo que encontrou
o
caminho mais
nobre,
mas o mais tortuoso.

talvez, as víboras
avancem
para devorar
os últimos trocados.
são assim:
roem
as beiras,
os miolos do
pão, para depois,
se atrancarem
ao filé com
uma voracidade
devastadora (somente
vísceras saltadas
pelo chão).

sou tão
imperfeito
para compreender
o que
é essencial
em
tudo.

[...]

o blá-blá-blá
de
tantos eruditos,
quase me
enlouquece.
pensam
muito.

sentem
pouco.

e ela
me conta
que
a
carência faz coisas.
e eu sei
bem do
que ela
fala.
ano passado, nesta
mesma época,
estava em casa alheia,
sofrendo
em silêncio,
maldizendo
a minha
tão idiota
aventura.

ser imperfeito.
ser plural.
que agonia
carrego no peito?
nada mais te conforta (?)

recolhe esta
mágoa...
inda tenho
esperança (?)
não rias da minha
inocência...sou
como tu,
imperfeito feito aço e flor e espinho e cansaço.

Do projeto literário "Forma Crua e Poema pra quem tem verso" (1987-1997)

Desvelos


E, de repente, fiz-me dezenas de perguntas... os oráculos nesta hora se calaram, pois acreditavam no silêncio farsesco de suas sabedorias...

Que se ame sem perda integral... na mistura... nos moldes sem censura...onde a vida reluta em se fazer vida! Ora, que se ame! Mas, que o amor não seja breve, nem de um mais solene, nem de outro mais ardente, das beldades ou dos seres que só desejam, enfim, desfazer do amor o cume do labor sublime...
Que se ame nas paredes nuas... nos penteados de maciez soturna...nos enlaces práticos de se doar o corpo em troca da palavra certa e, por si só, explícita e sem dor. DOR que guilhotina, onde os falsos sentimentos encontram guarida, mas que desfalecem nos uivos dos ventos, como num balanço de crinas sangüinolentas...
Que se ame além das palavras... onde tudo é gesto...pantomima dos pleniamados...Que se ame além da porta, além do quarto, além do pranto...OH! Tantos questionamentos... E eu que não me vejo neste flagelo secreto, neste manto de crispar a carne, de mãos feridas pelas chagas, segurando minhas penas como pássaro ferido... e ainda não sei o que queres, apesar do olhar...
A coragem dos homens que não perdem um só momento, para responder a todos que estão doentes, que se vigiam e se destroem, descrentes na renovabilidade da paixão, fazem-me crer numa possibilidade remota, ainda que o tempo seja cruel... Não posso admitir a dor que não me pertence... engendrada na fonte de meus Ser...Não mais!
Este pranto que incrementa as ficções tão semelhantes àquela infância famigerada, destroçada de onirismos, recheada de crueldades avassaladoras, revelam-me as verdades que possuo... préstimos que relato na Arte e na busca do Amor...

Quando via o horizonte, pedindo a proteção dos deuses, uma lança atravessava meu peito... e aquela casa de degredos sussurrava breve e lenta, até que se martirizasse o canto. E o mar me inundava... o mar onduloso, contrastando com minha face angulosa e apaixonada...a voz mansa repousara, enfim...Ah! Eu que não tenho pai, nem mãe, vivendo no dorso dos corcéis alados, presenciando a chama de séculos... o coração quente a pulsar, pulsar, PULSAR!
Os enganos favoreciam os ocultamentos... longe da nudez e da inteireza...Os irmãos de sangue te olvidariam, porque serias feliz sem eles...os mesmos irmãos que vivem esta tragédia humana, sabedores da História assim como tu, inda sendo mais moço...

Quando a menina te ofertou os lábios quentes de uma lascívia imponderada, tua boca fremiu desculpas como alguém cativo em seu estertor... A perversão se agitava, embora não sentisse piedade dos outros e levasse teus sonhos em fantásticas alvuras... tua obra madura!
Desvencilho-me dos afagos sem carícia, dos que não me sentem... Que se ame até a última gota e, quando saciado, deixe o corpo flamejar, irromper as nuvens com a leveza postergada pelos anos, onde o sorriso delicioso possa originar um facho de luz rasgante, destruindo o ventre das estrelas... lá no céu.

(1994)

Do projeto literário "Forma Crua e Poema pra quem tem verso" (1987-1997)

VISIVELMENTE O MAR


Contra todos os povos,
contra o mar,
velejeiros novos,
restam-lhes apenas remar


Pobre poeta,
sonha com a liberdade,
o preço de tua moeda,
é apenas covarde.


Fonte de riquezas,
black-tie em festas,
esqueceste das profundezas,
do sábio fechar de arestas.


Visivelmente o mar
encobriu o teu olhar,
gostaria de enxergar
um novo jeito de amar.

(1987)

Do projeto literário "Relíquias da Memória e Flashes do Tempo" (1998)

Destino


Deixei
Meu
Coração
Num
Canto e
Pensei que
Ninguém
Tivesse
Visto...
O que
Atrasou,
Sem dúvida,
Minha dívida
Com o
Destino...!

Do projeto literário "Kiara e o Encontro dos Anjos" (2001)

Kiara


Tinha os olhos turvos de turmalina. O sorriso espontâneo lhe dava um ar juvenil, pleno de sonhos e aurora. O desenho de seu rosto lembrava as meninas azuis de meu tempo de escola. Acontece que Kiara teve de viajar para o (E)xterior. Foi estudar em Londres porque ganhou uma bolsa de estudos. Voltou diferente. Trouxe na bagagem a frieza londrina, um sorriso opaco e os olhos embaçados de neblina.
Kiara era assim mesmo. Resplandecia, mas também se suicidava em devaneios. Nunca soube de minhas doloridas cartas, correspondências que nunca enviei, com receio de suas tresloucadas atitudes. Kiara não podia ser molestada, principalmente por um principiante, um amador. Sua volúpia era, decididamente, um assombro de chama e suavidade. Kiara vivia no limite da ambigüidade. Nunca se entregara...
Naquele dia de contorno plúmbeo, de mil e tantas primaveras, tudo indicava pernoite e algaravia. Numa casa de praia, encolhido no chão da sala, sonhei com Kiara. Passeávamos pela areia com roupas claras e acetinadas. Colhíamos conchas e saudávamos o mar. Nesta dimensão, podia escolher as cores da minha aquarela... e, os olhos de Kiara eram muito verdes...olhos de turmalina. Chovia. Acordei ensopado de suor aziago. Tremi ao vê-la. Espionara-me a noite inteira. Os olhos claros faiscavam e os cabelos de girassóis ondulavam. Cerrei meus olhos por um tempo que não defino, vilipendiei minhas criaturas interiores e até zombei das auroras. Desprotegido e ancorado numa beatitude mística. Ela sorria do meu desespero. Mexia os cabelos numa coqueteria impagável. E não dizia nada. Lia meus pensamentos mais sórdidos e impublicáveis. E, assim, Kiara me possuiu, sem ao menos me tocar...

Kiara despediu-se numa tarde verde. Na bagagem de mão poucos objetos pessoais. Embarcaria, definitivamente, para o velho continente. O vento marítimo brincava com o caracol de seus cabelos. Kiara era assim mesmo. Resplandecia, mas se suicidava todos os dias. Enviei minhas correspondências do degredo durante cinco anos. Nunca obtive resposta. Teria lido as cartas do infortúnio? Teria se lamentado quando cortei meus pulsos com os cacos de vidro da janela? Acontece que Kiara voltou da Europa. Os olhos de turmalina se acinzentaram. Os cabelos de mil girassóis deram lugar a mechas azuladas. O sorriso era o mesmo. Mas, Kiara tinha vivência agora. Falava polilínguas, trajava roupas italianas. Kiara não era mais menina.

Além do bosque, havia a rua da infância. Brincávamos sempre de ‘jogo da verdade’. Eu amava uma menina de onze anos. Meus tolos amigos se mijavam de rir. Kiara nunca sorria. Abaixava os olhos e parecia brincar com os meus sentimentos. Cerrava os punhos, minha face ruborizava e me engalfinhava na calçada com os meus companheiros de bola. Mas, não sou mais criança. Kiara não pode mais rir de mim. As alegorias se foram. Embebedo-me todos os dias. Provei o gosto de todas as torturas agridoces.

Falava do sertão e dos seus esfomeados platinados. Kiara adentrou no ambiente iluminado por archotes. Sorriu como daquela vez. Estendeu-me as mãos vaporosas, tocou-me a fronte com seus lábios de veludo e convidou-me pra dançar.