segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Do projeto literário "Com as duas patas no peito" (2004)

XVI

Com as duas patas no
Peito.
Já não há
Fôlego.

Todo dia é um
Arraste de pernas
Que pesam como
Vergalhões de
Trocentas
Toneladas.

Com as duas patas no peito,
Correr já
Não é necessário.

E só se via o vulto
Da mulher
Durante a noite
Embaçada.

Durante anos leste
Mais de quinhentos
Livros fantásticos
E pensaste
Que isto seria
Suficiente.

Agora,
Diante desta barbárie
De dentes e insígnias,
Exércitos comandam
Fronteiras
De frágeis continentes.

Tenho duas patas no peito.
Unhas e pêlos na face.
Arranhões que cortam
Meu corpo
De algumas décadas.

E o vaticínio dos papas
Ou dos profetas dos mass-media
Não garantem
Se vou comer amanhã.


Eu poderia,
Simplesmente
Mendigar nas auroras primaveris
E morrer à míngua
Como qualquer indigente
Desta pólis-ilha.

Combinando versos
Com adjetivações sublimes
E derivações rítmicas,
Não te levarão a nada.

Nesta selva pedregosa,
Tua mortalha
São as vestes da
Infinda batalha que
Travas com inimigos
E travestidos amigos.

E a nosofobia que
Te afeta no declínio
De cada restolho de sol,
Torna-se um jorro de
Clarividência contínua,
Como se tua carne
Fosse atravessada por lanças
Analgésicas.

Eu pediria aquele
Beijo sempre adiado,
A maçã meio mordida,
Mas com marcas
Pontiagudas de tuas presas
E resquícios de tua saliva morna.

Duas patas no peito.
Um adormecer
Em gélida noite de conflitos.
O que fazer?
Esquecer que existo?
Chutar a cara dos hipócritas?
Realizar o atentado do ano?
Puxar o tapete daquela autoridade
Empedernida?
Catarrar na catraca dos
Autocarros?

Amanhã,
Com que roupa eu vou
Para o velório das
Almas sonâmbulas?
Com que roupa eu vou
Para enfrentar as ruas
Da cidade?

O lusco-fusco do
Entardecer,
As pontes como
Metáforas,
Integração alquebrada
Pelas intenções canalhas
Do poder res publico.

Oh, coração inerte!
Por que agora recusa-te a
Bater, se neste
Flagelo já degelas
Minha frieza empertigada?
Por que não respondes
Aos eletrochoques
Da medicina convencional,
Que sempre nos ensinou a morrer
Resignados, tal como o Vaticano
Nos educou nos bancos escolares?

Oh, coração caduco!
Logo agora, que fiz a
Viagem invertida e fiz-me
Menino,
Trazendo à tona para os incautos bovinos
Os questionamentos essenciais
Desta experiência terrestre?

Duas patas no peito.
Unhas e Pêlos em minha face.
Teria dito “fechem as cortinas”,
Antes daquele golpe de misericórdia.

E, se porventura,
Pensares que este embate
Entre Eros e Tânatos
Já está por demais desfigurado, típico
Clichê shakesperiano,
Não esqueça deste tormento:
Vivemos o que é possível, diante
Da insuportável e constante proximidade
Do n(v)osso desaparecimento!

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