segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Do projeto literário "Kiara e o Encontro dos Anjos" (2001)

Kiara


Tinha os olhos turvos de turmalina. O sorriso espontâneo lhe dava um ar juvenil, pleno de sonhos e aurora. O desenho de seu rosto lembrava as meninas azuis de meu tempo de escola. Acontece que Kiara teve de viajar para o (E)xterior. Foi estudar em Londres porque ganhou uma bolsa de estudos. Voltou diferente. Trouxe na bagagem a frieza londrina, um sorriso opaco e os olhos embaçados de neblina.
Kiara era assim mesmo. Resplandecia, mas também se suicidava em devaneios. Nunca soube de minhas doloridas cartas, correspondências que nunca enviei, com receio de suas tresloucadas atitudes. Kiara não podia ser molestada, principalmente por um principiante, um amador. Sua volúpia era, decididamente, um assombro de chama e suavidade. Kiara vivia no limite da ambigüidade. Nunca se entregara...
Naquele dia de contorno plúmbeo, de mil e tantas primaveras, tudo indicava pernoite e algaravia. Numa casa de praia, encolhido no chão da sala, sonhei com Kiara. Passeávamos pela areia com roupas claras e acetinadas. Colhíamos conchas e saudávamos o mar. Nesta dimensão, podia escolher as cores da minha aquarela... e, os olhos de Kiara eram muito verdes...olhos de turmalina. Chovia. Acordei ensopado de suor aziago. Tremi ao vê-la. Espionara-me a noite inteira. Os olhos claros faiscavam e os cabelos de girassóis ondulavam. Cerrei meus olhos por um tempo que não defino, vilipendiei minhas criaturas interiores e até zombei das auroras. Desprotegido e ancorado numa beatitude mística. Ela sorria do meu desespero. Mexia os cabelos numa coqueteria impagável. E não dizia nada. Lia meus pensamentos mais sórdidos e impublicáveis. E, assim, Kiara me possuiu, sem ao menos me tocar...

Kiara despediu-se numa tarde verde. Na bagagem de mão poucos objetos pessoais. Embarcaria, definitivamente, para o velho continente. O vento marítimo brincava com o caracol de seus cabelos. Kiara era assim mesmo. Resplandecia, mas se suicidava todos os dias. Enviei minhas correspondências do degredo durante cinco anos. Nunca obtive resposta. Teria lido as cartas do infortúnio? Teria se lamentado quando cortei meus pulsos com os cacos de vidro da janela? Acontece que Kiara voltou da Europa. Os olhos de turmalina se acinzentaram. Os cabelos de mil girassóis deram lugar a mechas azuladas. O sorriso era o mesmo. Mas, Kiara tinha vivência agora. Falava polilínguas, trajava roupas italianas. Kiara não era mais menina.

Além do bosque, havia a rua da infância. Brincávamos sempre de ‘jogo da verdade’. Eu amava uma menina de onze anos. Meus tolos amigos se mijavam de rir. Kiara nunca sorria. Abaixava os olhos e parecia brincar com os meus sentimentos. Cerrava os punhos, minha face ruborizava e me engalfinhava na calçada com os meus companheiros de bola. Mas, não sou mais criança. Kiara não pode mais rir de mim. As alegorias se foram. Embebedo-me todos os dias. Provei o gosto de todas as torturas agridoces.

Falava do sertão e dos seus esfomeados platinados. Kiara adentrou no ambiente iluminado por archotes. Sorriu como daquela vez. Estendeu-me as mãos vaporosas, tocou-me a fronte com seus lábios de veludo e convidou-me pra dançar.

Um comentário:

standbyme disse...

Ingenuidade, sutileza, esperanca, amor platonico (idealizacao), vergonha, deseperanca (a um certo ponto do conto),loucura, sensatez, por fim amor, vc fez um mix de sentimentos expressados em poucas linhas. Ao ler, senti que se deu num longo tempo de espera e que a espera pode, pq nao, ser algo positivo. Agora, adultos, maduros poderao melhor usufruir do seu tao esperado sonhado desejo agora concreto e palpavel. Lindo conto Jeferson!!