segunda-feira, 23 de julho de 2007

O legado do carlismo


Por Jéferson Dantas


O desaparecimento de Antônio Carlos Magalhães da cena política brasileira, depois de mais de cinco décadas imiscuído no aparato estatal e controlando com mão-de-ferro seus interesses particulares na Bahia, pôs fim a um núcleo geracional de políticos truculentos. Magalhães sempre foi o colaborador de primeira hora dos governos militares e nunca titubeou em pulverizar desafetos, mesmo os que, em primeira instância, configuravam-se como aliados. Todavia, o carlismo não foi e nem será o último fenômeno histórico bem acabado do clientelismo e do coronelismo no território nacional. Há muitos "caciques" bem vivos e tão nocivos quanto "toninho malvadeza".


O discurso cuidadoso sobre a morte de Magalhães, beirando à fleuma, de políticos historicamente oposicionistas e que hoje estão no poder, revelam bem o tom asséptico de como se dão as relações palacianas com os antigos colaboradores da ditadura militar. Há, de fato, um mal-estar em comentar sobre a trajetória de atropelos autoritários de Magalhães. Para muitos um alívio! A sombra de Magalhães incomodava muitos deputados e senadores, tantas vezes desqualificados pelo "painho".


A maior herança do carlismo está alicerçada no legado colonial do Brasil. Público e privado sempre se confundiam. Em troca, o coronelismo carlista prestava importantes serviços aos generais-presidentes durante os anos de chumbo no país, silenciando a liberdade de imprensa em todo o estado da Bahia. Paradoxalmente, Magalhães teve admiradores na própria classe artística baiana, sendo o caso mais proeminente o da cantora Gal Costa. Odiado e amado. Assim, Magalhães adentrou o século XXI. Um pouco mais combalido é bem verdade. Cardiopata, quedou num quarto de hospital. Seus herdeiros tentam se desvincular da imagem truculenta do 'painho', afinal, há outras formas de se estabelecer o consenso popular. Mas, não há como negar a sua importância. Magalhães continuará sendo o modelo mais bem definido de tudo que deve ser condenado e extirpado da sociedade política nacional.


sábado, 14 de julho de 2007

Lutas incorporadas

O fatalismo e destinos traçados são um engano! Aprendemos mais quando conseguimos incorporar as nossas lutas cotidianas ao exercício laboral. A experiência coletiva nunca deve ser abandonada ou subestimada. Quando Marx dizia que o "professor precisava ser educado" ou quando Gramsci afirmava que "todo professor é aluno e todo aluno é professor", estavam na realidade defendendo a tese de que 'ninguém ensina ninguém'; a educação não é uma via de mão única; pressupõe trocas, desejos, vontades, projetos, utopias... Desplugados do que é essencial em sua existência, homens e mulheres passam a desconhecer a capacidade coletiva de mudar os rumos da sociedade capitalista. A alienação mediada pelo Estado e por grandes grupos midiáticos amortecem nossas percepções objetivas. Amorfinados, rumamos...pra onde?
Incorporar a luta coletiva, aproximando-nos dos movimentos sociais, exercendo plenamente a coorperação mútua e desmontando a lógica do capital e a opção de classes do Estado, são ações permanentes. Do contrário, o vazio e o sentimento de culpa acabam sendo incorporados de tal forma, que passamos a internalizar valores artificiais, desejos superficiais, em síntese, as relações sociais e de produção tornam-se meramente fetichizadas.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

A vez dos "carentes" (?) na UFSC

Esta foi a manchete do tablóide do grupo RBS (A Hora de Santa Catarina) após a aprovação das cotas sociais na UFSC. Denota, em grande medida, o pensamento da classe média que, agora '"forçosamente", terá de conviver com os excluídos sociais.
A expressão "carentes" foi de uma infelicidade tamanha. Além de ser um periódico sensacionalista, voltado ao leitor despreocupado com o aprofundamento das notícias ou dos acontecimentos sócio-históricos, o tablóide procura dar um tom de chacota a um tema tão sério e caro aos afrodescendentes deste país. A vulgaridade e a superficialidade com que o tema é tratado retrata bem a opção classista deste conglomerado midiático.
A 'carência' não é uma escolha. Trata-se de uma sociedade controlada pela lógica do capital e pela produtividade sem limites, onde a alienação se torna cada vez mais contundente. Exige-se, pois , mais responsabilidade desta imprensa de intrigas, que entende o sujeito coletivo como ignaro e incapaz de compreender a sua dinâmica manipuladora. Os 'carentes' devem ter escolhas como qualquer outro cidadão. Que saibamos, pois, conviver com as diferenças sociais desta nação.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

Entre fados e insônias


É quando a noite chega e eu me afasto de tudo que me enoja, que vislumbro o contorno de teu corpo, num local em que nunca estive. E são noites de arrepio e desejo; e sinto que tudo isso é muito caro pra mim. Foram anos de cultura cristã a crispar meu corpo e me infernizar com o mea culpa. Mas, eis que tu surges, assim, sem nenhuma exigência. E queres apenas o colo, o carinho nos cabelos e o beijo eterno de lábios.


Nem a secura dos olhos pouco serenos te acuaram. E esperaste até o último momento. E carregavas frutas frescas em tua própria roupa orvalhada. E assim caminhamos pelas veredas arborizadas e não tínhamos mais pressa. E a completude era tamanha que poderíamos ali mesmo abandonar o mundo.


E foi o que fizemos.

Quem sabe amanhã...


Quem sabe amanhã eu aprenda a dançar... quem sabe amanhã eu decida escrever o meu livro de romances e deixe de fumar... quem sabe amanhã eu tenha tanta energia e disposição para pedir demissão daquele emprego que me consome as forças e me corrói a alma criadora... quem sabe?


Quem sabe eu deixe de mentir e me lamentar. Quem sabe eu aprenda a tocar um instrumento musical e me dedique à boemia sem remorsos! Quem sabe eu deixe de ser generoso e tolo e abandone, de fato, todos/as que me pedem favores e ganham seus louros às minhas custas!


Quem sabe?


Quem sabe eu discuta sério com aqueles/as burocratas empedernidos que ocupam os espaços públicos como se estes lhe pertencessem e planeje alguma afronta de dimensões maiores?


Quem sabe consiga aprender uma nova canção. E possa ver pássaros multicores na outra estação e reencontrar a poesia dos anos passados.


Quem sabe o mendigo é mais pleno do que eu. E lembro de uma canção de Buarque: "Nós gatos já nascemos pobres, porém, já nascemos livres!"


Quem sabe amanhã eu também me liberte?


Quem sabe?

O que importa?


O que importa agora se teus olhos cabisbaixos não respondem ao singelo apelo de um chamado; o que importa agora que eu saiba de teus secretos planos trancafiados, exigindo desculpas veladas; o que importa os anos modorrentos debaixo de tantas culpas e desenganos, como se uma força externa, mágica e estranha, pudesse te salvar?


O que importa se estás surda para me ouvires na escuridão do quarto; se ontem ainda choravas quieta e dizias palavras ininteligíveis e rias por dentro como quem faz uma molecagem atroz; o que importa o acinzentado de teus olhos mais distantes e mais opacos nos invernos do sul;


Eu posso te dizer agora que pouco importa a tua fúria e o teu desejo. Porque teu corpo e languidez foram apenas lampejos! Porque a muralha de teu corpo é um flagelo do qual não me amena e tampouco me absorve.


E eram escadarias tuas argumentações de boteco. Um jorro de pura e transbordante fluidez de passos nas nuvens. Nefelibata como te intitulavas, como se isso pudesse resolver tua cólera e o pouco sorriso. Economizavas até nisso.


E agora queres saber por que não te procuro? Por que deixei de escrever ou telefonar? Por que abandonei meu estado de miséria? Por que passei a valorizar minha existência? Pois bem, frágil aurora, vá procurar o que está distante e envolto em névoas. Eu estarei tranqüilo, passeando com meus pedregulhos de escritos e apostando em algo superior ao que definiste como inexorável.

sexta-feira, 6 de julho de 2007

As cotas e a dívida social brasileira




Por Jéferson Dantas


As manifestações ocorridas recentemente em Porto Alegre contra o sistema de cotas para estudantes egressos das escolas públicas e afrodescendentes continuam acirrando os ânimos nas universidades públicas brasileiras. Tal medida desagrada em grande parte os/as estudantes que podem fazer cursinhos pré-vestibular e que já estão inseridos/as na lógica perversa da seletividade meritocrática. Até aqui, nenhuma novidade. Entretanto, a permanência do preconceito racial neste país é digno de nota. Os que são contrários/as às cotas preferem discutir a melhoria da educação básica pública brasileira o que, teoricamente, colocaria em pé de igualdade aqueles/as que podem realizar seus estudos em boas escolas privadas e os/as que não têm acesso a este tipo de ensino. Em outras palavras, joga-se para as calendas gregas uma discussão de cunho histórico, fruto da mais rasa e perniciosa permanência da exclusão social.




Se levarmos em conta os/as estudantes afrodescendentes que conseguem terminar os estudos no ensino médio em relação aos/às estudantes brancos, já teremos uma boa medida da discrepância de escolarização em nosso país. Apenas para citar um exemplo, em Florianópolis crianças e jovens em situação de risco são em sua maioria afrodescendentes. São as que abandonam os estudos ainda no ensino fundamental, ou porque precisam trabalhar (de forma precária) mais cedo ou porque a própria escola reforçou de maneira naturalizada a 'incompetência' destes jovens para os estudos. A violência estrutural atinge de forma muito mais cruel e nefasta os/as afrodescendentes. São os que têm os piores índices de escolaridade e, em conseqüência, de empregabilidade.




Ao tratar desiguais como iguais somos presas fáceis das contradições. Não olhamos para o passado como substância dialética em relação ao presente. Nesta direção, a preocupação se volta a uma competitividade desenfreada, movida a contrapelo pela lógica do capital. Certas coletividades desejam o fim da violência sem se darem conta de que a mesma é fomentada dia após dia pela ausência de trabalho formal e a intensa concentração de renda. A mentalidade "pequeno-burguesa", distante de qualquer solidariedade, alimenta a individuação exacerbada e o descaso com as questões de fundo histórico. Logo, discutir as cotas sociais/étnicas nas universidades públicas vai além dos discursos inflamados dos prós e contras. Ela está alicerçada na denúncia de que somos incapazes de assumirmos os nossos próprios preconceitos.