segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Tempos de Violência


Marx e Engels (1988, p. 78) afirmavam no Manifesto do Partido Comunista que a ‘história de todas as sociedades existentes até os dias de hoje é a história da luta de classes’; acrescentavam ainda que a burguesia havia desempenhado na História um papel eminentemente revolucionário, fazendo da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituindo numerosas liberdades conquistadas com tanto esforço pela implacável liberdade de comércio, defendendo assim uma exploração aberta cínica, direta e brutal.
Neste sentido, o capitalismo não destruiu apenas o modus vivendi feudal; destruiu o trabalho artesanal e a criatividade humana; padronizou valores de consumo; individualizou o fracasso e utilizou a ‘democracia’ para impor sua força demolidora. O excessivo relativismo histórico e um acomodamento teórico cínico diante da destruição da espécie humana ganharam contornos muito preocupantes na formação de homens e mulheres em nosso país e no mundo.
Parece-nos razoável, portanto, partir dessa indagação: como responder ao fenômeno histórico da violência sem levar em conta os valores da ‘lógica do capital’? A ofensiva destrutiva do capital acabará por exterminar os recursos naturais e alimentícios, selecionando cada vez mais os/as sobreviventes de tal modelo econômico. Nesta direção, a luta de classes vem se configurando cada vez mais como categoria de análise central nos dias de hoje.
A formação do Estado brasileiro é atravessada por processos históricos de cunho autoritário, excludente e de massacres sistemáticos. O Estado republicano, ‘inaugurado’ em 1889, e sem qualquer participação popular, teve pequenos intervalos democráticos.
Reconhecer os massacres do Estado e a ausência de um projeto social para o Brasil já seriam suficientemente notáveis para se compreender as omissões nos setores estratégicos deste país (educação, saúde e infraestrutura).
Assim, pensar a violência de Estado num país como o Brasil é compreender os limites de uma democracia liberal legalista, conduzida por tecnocratas e por poderes constituídos (Executivo, Legislativo e Judiciário) bastante afastados dos interesses coletivos; um Congresso Nacional formado por 513 deputados e 81 senadores, assentados em alianças de classe (ruralistas, evangélicos e empresários), não contribuem para elevar o debate sobre a desigualdade social e diminuir a concentração de renda. A política do consenso pela força durante o regime militar foi substituída pela política do consenso judicialista (a saída para os problemas sociais é de ordem técnica e não de ordem política). Princípios democráticos esvaziados e uma classe política narcísica ou arrivista têm conduzido o país a uma esquizofrênica conjunção de maniqueísmos levianos e por projetos de poder que reduzem a importância da ideologia. Ignorar, portanto, o papel do Estado na análise de classes é não reconhecer o quanto o mesmo procura usar a máquina estatal na defesa e o fortalecimento da ordem social.





segunda-feira, 27 de outubro de 2014

A geografia do ódio
Por Jéferson Dantas[1]


A disputa presidencial no Brasil trouxe à tona muitas questões de ordem social e cultural que precisam ser problematizadas, dentre elas o ‘discurso do ódio’. Longe de ser uma questão menor, podemos afirmar que há neste imenso país uma ‘cartografia do ódio’, que vem desde a gênese colonial. A exploração desenfreada dos recursos naturais do litoral brasileiro pela metrópole portuguesa e a utilização da força de trabalho escrava dos povos originários e dos negros da África, realizaram neste país um verdadeiro mapa da fome, da discriminação, do genocídio, do preconceito e do apartheid social. Em outras palavras, vale a máxima de que os pobres e miseráveis são culpados pela sua própria pobreza, sem qualquer contextualização histórica e uma análise mais depurada da construção da nação brasileira.

Somente nos EUA há dois mil grupos de ódio, aproximadamente, e não por acaso tais grupos se concentram na região sul daquele país, território de intensas disputas sociais e raciais, que se acirram desde a metade do século XIX. Num país tão desigual como é o caso do Brasil, as elites dirigentes e nichos políticos oligárquicos reprisam as mesmas artimanhas dos grupos conservadores estadunidenses, pautando-se numa pretensa superioridade racial e econômica, fruto de espoliações regulares que não permitiram às populações empobrecidas acesso a bens culturais básicos, como são os casos da educação e saúde.

A principal síntese a se fazer deste processo eleitoral – notadamente em relação aos cargos legislativos – é de que não estamos suficientemente problematizando as questões políticas do Brasil. Em outras palavras, a negação da política, da história, e a exasperação dos preconceitos arraigados, têm gerado uma cizânia sem volta, de contornos fascistas e autoritários. A ‘desrazão’, a alienação, o preconceito, o recuo da teoria e a ausência de argumentação foram os motores destas eleições no Brasil. E isto não é pouco para um país de democracia jovem e que mal se recuperou das agruras de uma ditadura militar.



[1]  Historiador e Doutor em Educação. Professor no Departamento de Estudos Especializados em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (EED/CED/UFSC). E-mail: jeferson.dantas@ufsc.br

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Por uma estética subtrópica



O músico, compositor e escritor gaúcho, Vitor Ramil (1962-), num opúsculo intitulado A estética do frio: conferência de Genebra, publicado em 2004, procurou sintetizar as controversas influências literárias e musicais do Rio Grande do Sul e dos países do Prata (Argentina e Uruguai), assim como as lutas identitárias neste país continental. Ramil utiliza o emblema do “frio” para catapultar o gênero musical milonga, expressão de origem africana, plural de mulonga e que significa “palavra”. A milonga-canção é conhecida pelos seus acordes menores, lenta, repetitiva e “afeita à melancolia, à densidade, à reflexão apropriada tanto aos voos épicos como aos líricos, tanto à tensão como à suavidade, e cuja espinha dorsal são o violão e a voz”, segundo as próprias palavras do gaúcho de Satolep, anagrama de sua cidade natal, Pelotas. De certa forma, isto revela a obra consolidada de Ramil, tanto a musical quanto a literária. Indagado certa vez sobre como era ser um músico à margem do eixo Rio-São Paulo, respondeu da seguinte maneira: “Não estamos à margem de um centro, mas no centro de uma outra história”.
Não por acaso, o documentário A linha fria do horizonte – lançado este ano e com direção do cineasta curitibano, Luciano Coelho – procurou captar, justamente, a obra e o pensamento de um grupo de compositores do sul do Brasil, Argentina e Uruguai que têm como consonância em suas obras a paisagem e o sentimento do local onde vivem. O satolepense Vitor Ramil, os uruguaios Daniel e Jorge Drexler e o argentino Kevin Johansen são alguns dos músicos que por meio de suas criações, conjeturam sobre as questões identitárias local e global transversalizadas pela “estética do frio”. A produção documental foi realizada nos meses invernais de junho/julho de 2011 e 2012, totalizando mais de 120 horas de filmagem.
Evidentemente, que ao se buscar uma estética subtrópica em contraponto ao estereótipo solar do Brasil tropical e carnavalesco, faz-se necessário pensar uma produção cultural mais ampla da região sul do Brasil, onde se inscreve Santa Catarina e o Paraná. E, ao se fazer isso, a alegoria metafórica da paisagem não pode se circunscrever ao burlesco, ou seja, à descrição passiva da paisagem como algo afastado de uma cultura histórica repleta de conflitos regionais (revoltas farroupilha e federalista, o conflito do Contestado, etc.) e que, por si só, notabilizam estes territórios em insídias políticas e afirmação de novas fronteiras.

PARA SABER MAIS:
RAMIL, Vitor. A estética do frio: conferência de Genebra. Porto Alegre: Satolep, 2004.
A LINHA FRIA DO HORIZONTE. Disponível em: http://www.linhafria.com.br/. Acesso em: 28 jul. 2014.





terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Sobre o assentamento “Amarildo de Souza”


Jéferson Dantas[1]

A ocupação de uma propriedade às margens da SC-401 no norte da Ilha de Santa Catarina tem motivado uma série de análises epidérmicas de um fenômeno repleto de múltiplas determinações sociais e históricas. As centenas de famílias que hoje ocupam o assentamento “Amarildo de Souza” possuem diferentes trajetórias, mas traços em comum, já que são oriundos de territórios empobrecidos da Grande Florianópolis e de outros entes federativos. Estes homens e mulheres viveram durante muitos anos em áreas rurais e urbanas com pouquíssima infraestrutura, apresentando baixíssima escolarização e sofrendo toda sorte de precarização de sua força de trabalho. Compreender as migrações intra e inter-regionais é essencial para que não fiquemos aprisionados a um discurso que criminaliza os movimentos sociais sem qualquer adensamento histórico.

O discurso midiático liberal, de maneira genérica, defende deliberadamente a propriedade privada como princípio constitucional inalienável, porém, sabe-se que no interior dos mecanismos jurídicos burgueses a igualdade entre os cidadãos é apenas formal, já que há aí imensas e intensas desigualdades substantivas em contextos concretos da produção material humana. Seria razoável problematizar o déficit de moradia urbana na Grande Florianópolis, as diferentes formas de acesso à escolarização básica e as reais motivações que desencadeiam a organização destes assentamentos, tendo em vista que estes sujeitos históricos só conseguem ter visibilidade por parte do poder público quando estão devidamente organizados e dispostos a enfrentar posicionamentos políticos e ideológicos marcadamente hegemônicos. Ao se desistoricizar as ocupações humanas recentes, que estão na gênese colonial brasileira, incorre-se em anacronismos e defesas tacanhas de determinadas frações de classe. Evidencia-se aí que a luta entre capital e trabalho continua sendo a força-motriz da história contemporânea, especialmente em tempos de triunfo do pragmatismo capitalista.

Nenhuma investigação histórica – ou mesmo jornalística – digna deste nome será relevante se não for levada em consideração todas as partes envolvidas, com os seus devidos contextos temporais e espaciais. A ‘estratégia da desqualificação’, que criminaliza os movimentos sociais, universidades públicas, trabalhadores e trabalhadoras denota uma configuração bastante reducionista da complexidade do mundo do trabalho, que necessita ser arrostado com políticas públicas permanentes. A questão fundiária em Santa Catarina e, especialmente, na Grande Florianópolis, há muito tempo tem merecido uma discussão mais radical e propositiva de todos os seus envolvidos!



[1] Historiador e Doutor em Educação. Professor da UFSC. E-mail: clioinsone@gmail.com