quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015


OS “HERDEIROS” E A PERPETUAÇÃO DAS DESIGUALDADES ESCOLARES

Jéferson Dantas[1]

    A obra “Os herdeiros: os estudantes e a cultura”, de Pierre Bourdieu (1930-2002) e Jean-Claude Passeron (1930-), foi publicada na França em 1964 e traduzida no ano passado pela professora Doutora Ione Ribeiro Valle, do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal de Santa Catarina, e por Nilton Valle. O que uma publicação de meio século ainda tem para nos dizer sobre os sistemas de ensino e a distribuição desigual das oportunidades escolares? Como podemos fazer tais interlocuções/associações teóricas e empíricas com o Brasil, reconhecidamente um país em que as desigualdades escolares são flagrantes e históricas?
    Os sociólogos franceses são taxativos ao afirmarem que os sistemas escolares operam de forma objetiva uma eliminação “ainda mais total quando se vai em direção às classes mais desfavorecidas”. Em outras palavras, dentre todos os fatores de diferenciação social ou de distinção simbólica, “a origem social é sem dúvida aquela cuja influência exerce-se mais fortemente sobre o meio estudantil, mais fortemente em todo caso que o sexo e a idade e sobretudo mais do que um outro fator claramente percebido como a aflição religiosa por exemplo”.
    Por outro lado, numa distribuição desigual das oportunidades escolares aliada à origem social, as mulheres formalmente estariam em condições semelhantes aos homens, segundo os autores. Todavia, a desvantagem das mulheres aparece mais evidente nas classes baixas: “Se globalmente, as moças têm pouco mais de oito chances em cem de acesso ao ensino superior, os rapazes têm dez; a diferença é maior na parte baixa da escala social e tende a diminuir ou anular-se nos quadros superiores e nos quadros médios”.
    Mas, é na tese central dos autores, ou seja, de que a herança cultural favorece uma adaptação menos traumática nos bancos escolares aos filhos das elites econômicas, que se configuram os distintos handicaps sociais, ainda que os sistemas de ensino procurem mascarar ao máximo tais distinções: “Os estudantes mais favorecidos não devem somente ao seu meio de origem hábitos, treinamentos e atitudes aplicáveis diretamente às suas tarefas escolares; eles também herdam saberes e um saber-fazer, gostos e um ‘bom gosto’ cuja rentabilidade escolar, por ser indireta, é ainda mais certa”.
Ainda que nos dias de hoje as informações circulem de maneira célere no mundo infoviário, a escola continua sendo um importante espaço de acesso à cultura e ao conhecimento científico produzido pela humanidade. A escola teria de ser o território da democratização da cultura, mas invés disso, de acordo com Bourdieu e Passeron, a mesma desvaloriza e esvazia os conteúdos escolarizados/científicos, aquilatando a cultura herdada dos bem nascidos. Nada mais contraditório e aterrador se não fosse, dadas as evidências, a mais pura e preocupante verdade. Além disso, a escola inculcaria desde a infância um ideal incoerente, isto é, o estímulo à competição individual.
    Mas, este é apenas um dos aspectos apresentados pelos sociólogos, já que as suas análises avançam em direção à relação entre estudantes e professores no âmbito universitário, desvelando os jogos acadêmicos, os estereótipos estudantis, as expectativas professorais e as diferenças existentes entre as denominadas ‘universidades de província’ e ‘universidades de metrópole’. Para os autores, “se é difícil reconhecer o que divide e o que realmente une os estudantes, se é difícil fazer parte do jogo e ser sério em seus engajamentos, suas convicções e seus exercícios, é porque as ideologias e as imagens que suscita a relação tradicional com a cultura condenam a prática universitária, professoral ou estudantil, a apreender o real somente indiretamente e simbolicamente, isto é, através do véu da ilusão retórica”.
    À guisa de conclusão, Bourdieu e Passeron, apontam que a cultura escolar é uma cultura de classe, onde os estudantes das classes cultas são os mais preparados para se adaptar a um sistema de ensino de exigências difusas e implícitas. Fica-nos, por conseguinte, reflexões imperiosas no que concerne aos desafios de, efetivamente, democratizarmos a educação básica e o ensino superior em nosso país. Isto vai se tornando mais dramático quando se percebe que o esvaziamento dos conteúdos escolares associado a uma formação precária nas diferentes Licenciaturas respinga, justamente, naqueles que mais precisariam se apropriar dos conhecimentos científicos.

PARA SABER MAIS:

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Traduzido por Ione Ribeiro Valle e Nilton Valle. Florianópolis: EDUFSC, 2014.





[1] Historiador e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor no Departamento de Estudos Especializados em Educação do Centro de Ciências da Educação (EED/CED/UFSC). E-mail: jeferson.dantas@ufsc.br

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