quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015


DUALISMO EDUCACIONAL E O CURRÍCULO NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INTEGRAL

Jéferson Dantas[1]

   Tratar sobre o currículo escolar na perspectiva da educação integral exige de nós, professores e pesquisadores, uma profunda análise histórica, tendo em vista que a dualidade educacional que até hoje permanece em nosso país, é fruto de uma imensa e intensa desigualdade social. O Estado Liberal brasileiro, ainda que garanta constitucionalmente em seu artigo 205 que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, oculta em sua formalidade uma realidade concreta repleta de contradições, exclusões ou inclusões excludentes.
   O longo descaso com a educação pública no Brasil atravessou toda a República Velha (1889-1930) e foi somente na década de 1930, durante a Era Vargas, que o denominado ensino primário passou a ser parcialmente garantido pelo Estado. No início da ditadura varguista em 1937, a nova Constituição do Estado Novo criou um duplo dualismo, isto é, uma escola pública para os filhos da classe média que não conseguiam entrar numa escola privada e uma escola pública voltada para as classes sociais menos favorecidas, abreviadas numa educação primária-profissional.
   Com a redemocratização do Brasil em 1946 e a promulgação de nossa primeira LDB em 1961, a exclusão social apenas se agudizou, pois o nosso parque escolar não acompanhava a crescente massa de trabalhadores nos centros urbanos, exigindo maior número de instituições de ensino e a preparação adequada de professores. O golpe civil-militar em 1964 sepultou de vez qualquer possibilidade de uma reestruturação educacional efetivamente equânime e includente.
   Após novo processo de transição democrática a partir da década de 1980 e uma nova Constituição em 1988, o Brasil se deparou com os efeitos adversos de um enorme contingente populacional de analfabetos, por não ter realizado ou priorizado o enfrentamento histórico da desigualdade social, da concentração de renda e da permanência do dualismo educativo.
   Na década de 1990 houve a formulação da atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada e promulgada em dezembro de 1996 (LDBEN 9.394/1996), fruto de um embate entre o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública e o lobby dos empresários da educação. No que tange, especificamente, ao campo curricular da Educação Básica, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), formulados no final do primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso, tornaram-se, em grande medida, elaborações conceituais alheias ao que se discutia nas escolas e nos sistemas municipais e estaduais de educação (já que tais sistemas também possuíam suas próprias propostas curriculares). Além disso, havia claros desencontros entre os PCNs e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) no que dizia respeito à perspectiva formativa docente.
   Assim, ao abordarmos o tema do currículo na perspectiva da educação integral temos de compreender, também, que não é suficiente que estudantes, sobretudo, fiquem mais tempo na escola sem uma proposição política e pedagógica que não ultrapasse os rudimentos da leitura e da escrita. Não é possível ambicionar mudanças curriculares sem alterar as condições de trabalho de professores e professoras, que ainda necessitam dedicar-se a mais de uma escola por jornada de trabalho, configurando um quadro tenebroso de precarização estrutural.
   Na prática, em nível nacional, programas como o Mais Educação, instituído em 2007 durante o governo Lula, tornaram-se o carro-chefe de uma perspectiva de formação em tempo integral de estudantes da rede pública, especialmente daquelas unidades de ensino que apresentavam baixíssimos desempenhos de proficiência no IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Se, por um lado, o aumento do tempo na escola pode significar um aprofundamento de experiências cotidianas compartilhadas e o enriquecimento da vida intraescolar, não podemos perder de vista que tal acolhimento aos estudantes, especialmente das classes populares, não pode se transformar em mero atendimento, com sentido limitadamente clientelístico. Nessa direção, o programa Mais Educação tem se mostrado inepto diante das imensas demandas das escolas públicas, já que ao não privilegiar a contratação de profissionais habilitados e não remunerá-los de forma digna, acaba por reduzir sua ação a uma série de atividades pedagógicas duvidosas do ponto de vista da apropriação dos conhecimentos científicos produzidos pela humanidade.
   Não obstante, a discussão do “fator tempo” na escola está relacionada à própria organização do trabalho pedagógico (OTP), que pode se dar de forma seriada ou em ciclos, mas nunca dissociada de seu desenho curricular. Isto significa dizer que ao tratarmos do currículo da educação básica não podemos olvidar de uma pergunta central: o que queremos que as crianças e jovens se tornem em termos de uma formação humana integral?
   Logo, diante da perspectiva política e teórica que defendemos aqui, a escola pública integral não pode ser um espaço desprovido de intencionalidade e de um consistente projeto pedagógico; não pode ser um espaço para “alívio da pobreza”, como defendem os experts do campo da economia neoliberal, que não por acaso, são os mentores das políticas educacionais para os países do capitalismo periférico. Por outro lado, para não reprisarmos o discurso do “fatalismo pedagógico”, consideramos que para obter avanços significativos em suas formulações científicas, políticas e pedagógicas, um currículo na perspectiva da educação integral necessita estar atenta aos seguintes aspectos: 1) desenvolver um PPP que problematize as contradições e os desafios da classe trabalhadora no âmbito da sociedade capitalista vigente, onde os diferentes campos epistemológicos dialoguem por meio de uma perspectiva curricular que não dissocie o trabalho da educação; 2) que o corpo docente tenha dedicação exclusiva para atender as crianças e jovens das camadas populares, reforçando os laços afetivos com as comunidades escolar e local e estabelecendo os engajamentos empíricos necessários para que se torne uma comunidade investigativa; 3) que os diretores escolares possam ser eleitos de forma democrática por toda a comunidade escolar; 4) que todas as instâncias deliberativas da escola funcionem de forma efetiva (Associação de Pais e Professores, Conselho Deliberativo, Grêmio Estudantil e também o Conselho de Classe Participativo); 5) e, por fim, que a relação entre a escola e a família não se dê apenas de forma pontual, mas que se constitua como uma ação estratégica objetivando o fortalecimento dos vínculos pedagógicos e afetivos, assim como a sensação plena de pertencimento a todos os espaços de socialização da instituição escolar.





[1] Historiador e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor no Departamento de Estudos Especializados em Educação do Centro de Ciências da Educação (EED/CED/UFSC). Membro do Conselho Municipal de Educação na cidade de Florianópolis/SC (2014-2016). E-mail: jeferson.dantas@ufsc.br

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