quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

A atualidade de 1984


As metáforas de Orwell e a cultura do fragmento

Jéferson Dantas



As categorias analíticas empreendidas no ofício do historiador (tempo, espaço, memória e identidade), permitem ao pesquisador realizar mediações interpretativas em diferentes contextos históricos sem perder de vista o devir social, fruto das ações efetivamente humanas. Entretanto, atualmente, em diversos níveis socioculturais, o que vislumbramos é o desamparo coletivo entremeado nos estilhaços imagéticos que nos empurram para o drama, a cólera e a imobilidade. As utopias foram arrefecidas. Nos termos do educador Paulo Freire, por mais paradoxal que possa parecer, urge “humanizar os homens” antes que se dilacerem de forma definitiva. Nesta direção, a categoria analítica memória se configura como uma referência histórica primordial na apreensão deste mundo envolvido na era do conhecimento e pensamento único.

A idéia de real e desenvolvimento social orquestrados pelas políticas globalizantes e neoliberais estão alinhadas à indústria cultural, que manipulam estrategicamente nossa percepção do mundo. As forças sociais produtivas foram transformadas num imenso palco, repleto de atores/personas cada vez mais individuados, em situações espaço/temporais efêmeras. As memórias coletivas ‘dão livre passagem’ para o instantâneo e, não por acaso, estamos sofrendo lapsos de memória, tal como na metáfora orwelliana. George Orwell (1903-1950), escritor inglês, notabilizou-se com a obra Revolução dos Bichos, mas foi com 1984 que o autor descreveu com extrema competência a devassidão do privado, tendo como instrumento de controle a teletela, tema desse breve ensaio.


Devassidão do Privado e a perda da identidade humana

O narrador-personagem criado por Orwell – Winston Smith – é um membro da campanha da economia e responsável pela manipulação das notícias e dos acontecimentos históricos criados pelo Partido, que tem como mandatário máximo o onipotente e despersonalizado Grande Irmão (Big Brother). A narrativa se passa numa Londres sombria e miserável. O Partido tem quatro ministérios: o ministério da verdade (responsável pelas notícias, diversão, belas-artes e instrução); o ministério da paz, que se ocupa da guerra; o ministério do amor, que mantém a lei e a ordem; o ministério da fartura, responsável pelas atividades econômicas. Os lemas do Partido são: Guerra é Paz! Liberdade é Escravidão! Ignorância é Força! Orwell monta sua narrativa na perspectiva dos regimes totalitários que surgiram pouco antes da eclosão da segunda guerra mundial (1939-1945).

No departamento de registro Winston se encarrega de manipular fatos e deturpar informações, inventando notícias auspiciosas à população eufórica. O seqüestro da memória aparece na obra em sua totalidade, analisada por Winston como um direito que não lhe era mais garantido, expressando categoricamente a cultura do fragmento. Importante assinalar que Londres faz parte de uma potência denominada Oceania, permanentemente em conflito com a Eurásia e a Letásia, outras potências políticas da ficção. Ao se referir às superpotências Orwell preconiza as alianças políticas/econômicas dos dias de hoje, ou seja, blocos econômicos unidos pelo controle da mão-de-obra abundante e barata, além de elevada quantidade de matéria-prima em regiões onde impera regimes políticos corruptos e fragilizados pelas sucessivas guerras civis.
Winston trabalha na mesma seção de O’Brien, membro do partido interno; um ser bruto, rude, de pouca conversa na concepção de Winston. O grande inimigo do povo é Emmanuel Goldstein, repudiado todos os dias nos dois minutos de ódio, numa espécie de catarse coletiva. Goldstein é caracterizado fisicamente pelo autor como um homem magro e de procedência judaica, referências implícitas ao anti-semitismo hitlerista durante o regime nazista. As formulações teóricas de Goldstein estão inseridas num compêndio denominado ‘O Livro’, numa alusão às idéias do filósofo Karl Marx. A fraternidade representa um grupo de traidores do Partido e do Grande Irmão, igualmente execrada pelos membros do partido interno/externo. Para que nenhum membro do Partido cometa qualquer tipo de atentado contra o Grande Irmão existe a polícia do pensamento. Qualquer ato de subversão é classificado como crimidéia, passivo de execução pública através da forca.

Há ainda no desdobramento da ficção referências à criação de uma nova expressão lingüística (novilíngua), onde a contração das palavras e a supressão de outras possibilitaria a estruturação de uma linguagem minimalista e instrumental. Esta ‘profecia’ de Orwell pode ser associada nos dias de hoje à língua inglesa, que é tratada como língua universal em diversas áreas comerciais, mas principalmente no mundo da cibercultura. O Partido tem a clara preocupação de atrair as novas gerações para a sua proposta ideológica, reunidas na sigla INGSOC: novilíngua, duplipensar e a mutabilidade do passado. O duplipensar é um condicionamento social na maneira de reagir diante de determinados acontecimentos sociais, promovendo a dissociação espacial e temporal e, portanto, a anulação da memória. Diante da contradição do que é certo ou errado, real e imaginário, o Partido cria a falsa idéia de que a Oceania progride a passos largos numa evidente manipulação dos dados concretos daquela sociedade.

Todos os produtos comercializados ma Oceania tem a marca Vitória (seria uma alusão antecipatória à globalização?). Convivem com o racionamento, embora o ministério da fortuna anuncie, regularmente, produções recordes de gêneros alimentícios. A uniformidade do pensamento propagada pelo Partido atravessa todos os sentidos humanos. Este controle excessivo e autoritário causa uma impotência coletiva, eterna ansiedade, claustrofobia social generalizada. Crianças desde tenra idade são adestradas para se tornarem espiãs e delatoras – caso necessário – de seus próprios pais, como acontecia durante o período de formação da juventude hitlerista.

Nesta direção, Winston entende que somente a revolução a partir da prole – pessoas que não pertenciam ao Partido e que moravam em bairros fétidos e afastados do centro de Londres – poderia alterar a correlação de forças determinada pelo sistema de vigilância das teletelas. Porém, sistematicamente a prole era aterrorizada pelo ataque de bombas-foguete jogadas pela polícia do pensamento, assassinatos em massa que nunca constavam nas estatísticas oficiais. Os ‘proles’ por adorarem o jogo, a loteria, compreendiam o mundo à sua volta de maneira intuitiva; revoltavam-se, mas não conseguiam se organizar politicamente, razão pela qual eram explorados e expurgados facilmente, conforme palavras do narrador-personagem.
Todavia, a busca de uma memória que se perdeu entre as ranhuras do passado histórico vale à Winston a traição de O’Brien, que através da polícia do pensamento tortura-o até à exaustão. Winston é transformado numa não-pessoa, assim como Júlia, sua amante e cúmplice. Ao trair o que lhe era mais precioso – o amor de Júlia – Winston, despersonalizado e autômato, passa a venerar o Grande Irmão.

Orwell nos brindou com metáforas subjacentes aos regimes totalitários (tanto de esquerda como de direita), ma que podem ser profundamente associadas aos dias de hoje. Na era da globalização e de regimes políticos neoliberais, grandes conglomerados midiáticos ditam o que precisa ser ‘lembrado’ e o que precisa ser ‘esquecido’. A cultura do fragmento tem aí o seu viés antidemocrático e imobilizador. O controle da informação e os monopólios da mídia são ameaças à organização coletiva, unidas que estão na desqualificação permanente das falas discordantes ou dos discursos dissonantes. Pensando bem 1984 deixou de ser uma metáfora!


REFERÊNCIAS


BERTONHA, João Fábio; MOSCATELLI, Renato. A revolução dos bichos como instrumento para estudo do estalinismo e da Revolução russa. Jornal Bolando aula de História. Abr. 2000.

ORWELL, George. 1984. Trad por: Wilson Velloso. 12 ed. São Paulo: Editora Nacional, 1979.

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