domingo, 3 de junho de 2007

É possível transgredir nos limites da lei?




Por Jéferson Dantas


Em sua última edição a revista Isto É trouxe uma entrevista com o deputado federal Fernando Gabeira (PV/RJ), tendo como eixo temático as manifestações estudantis em São Paulo e a invasão da hidrelétrica de Tucuruí, no estado do Pará. Em tom ameno e bastante pragmático, Gabeira (ex-guerrilheiro durante o período da ditadura militar) defende o Estado de Direito e a resolução de tais impasses em fórum jurídico. Em outras palavras, o deputado reconhece a soberania da lógica do capital e a ausência de autoridade do Estado para a resolução das lutas corporativistas. Nas entrelinhas, há uma compreensão explícita de que os modelos de embate promovidos pelos sindicatos e movimentos sociais no Brasil caminham em descompasso com um país liberal e democrático.

Desse modo, pensar no Estado de Direito num país como o Brasil é um enorme quebra-cabeças. O aparato jurídico além de moroso precisaria ser refundado com os demais poderes. Ainda que Gabeira tenha renegado em parte seu passado e a construção do socialismo, países como o Brasil ainda são bastante influenciados pelo passado colonial, sendo o Congresso nacional o palco privilegiado do clientelismo e da corrupção endêmica. Como legalista, Gabeira se esquece de que mudanças sociais profundas só podem acontecer no litígio entre a sociedade civil e a sociedade política. As relações de poder são extremamente desiguais no Brasil. Soma-se a isso a despolitização de grande parcela da população, descrente em seus representantes e tomada de um ceticismo perigoso.

Assim, há duas ações que trafegam em desnível: a transgressão e a obediência às leis. E deve-se entender, antes de tudo, que transgredir no Brasil não é simplesmente ‘desobedecer as leis instituídas’. Ela se refere a uma mobilização social constante, que inclusive revela os limites do aparato jurídico burguês ou as suas contradições. Desobediência civil nem sempre significa ‘baderna’, ‘arruaça’. É um sintoma relevante de uma nação ainda em construção, que não consolidou o ‘Estado democrático de direito’ e que está longe de solucionar suas mazelas sociais.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Nepotismo e outras excrescências


Por Jéferson Dantas



Muitos meses se passaram até que o prefeito de São José, Santa Catarina, acatasse a decisão do Ministério Público e demitisse parentes ligados à sua gestão. O município campeão em nepotismo no estado, enfim, obriga-se a respeitar a lei. Para uma cidade que cresceu populacionalmente nos últimos anos e que teve sua área industrial ampliada de forma significativa, não é possível aceitar tamanho descalabro com o dinheiro público. A ausência de concursos para o preenchimento de cargos em todos os setores da vida pública da cidade também são dignos de nota. Ainda que ocorram os concursos, são passíveis de fraudes ou desconfianças para garantirem os cargos de quem já exerce alguma função indicada na prefeitura. É a política do toma-lá-da-cá.

Exemplos como o relatado acima ocorre em muitas cidades interioranas, acostumadas ao clientelismo raso, propinas, favoritismos, etc. O senador Antonio Carlos Magalhães afirmou em recente entrevista que uma ‘propininha’ de R$ 20 mil não é corrupção. Afinal, nossos estimados representantes no Congresso Nacional trabalham com números mais polpudos. Tal lógica nefasta e incrustada no aparato estatal brasileiro é endêmico, ganhando ares de uma epidemia ou pandemia. Há a certeza da impunidade e os cofres públicos são sangrados à revelia da população.

Se para uma cidade de porte médio como São José, que tem em seu portal de entrada “Bem-vindos à cidade do século XXI” (e seria melhor dizer séculos XVIII ou XIX) a máquina pública é compreendida como território de uns poucos, portanto, privatizada, o que dizer dos mais de cinco mil municípios que existem neste país? Como tem se gerenciado a ‘coisa pública’? Como se dão as relações de compadrio? Tais excrescências precisam ser extirpadas, ampliando-se os fóruns decisórios e a própria idéia de democracia participativa. E isto significa pressionar, sistematicamente, os(as) que acreditam donos do que é produzido, socialmente.

terça-feira, 8 de maio de 2007

Operação Moeda Verde: a privatização do público



Por Jéferson Dantas


A Operação Moeda Verde em Florianópolis - ação conjunta da Polícia Federal e do Ministério Público - revelou claramente a fragilidade da democracia representativa e os interesses privatistas que estão em jogo em diversos setores públicos que deveriam zelar pelo patrimônio ambiental. A concupiscência do legislativo municipal associado a uma política predatória que vem se agravando nos últimos anos na Ilha de Santa Catarina, responsabiliza e exige explicações também de seu executivo. Afinal, quem nomeia secretários e aliados políticos? A população florianopolitana desconhece ou ignora aqueles(as) que a representa, até porque diante do aparato burocrático estatal, dificilmente se sabe quem são os apadrinhados beneficiados pelas mãos caridosas do Estado.


As relações de poder no espaço público ainda são construídas pela prática colonial do favoritismo e o clientelismo, além da concussão de seus funcionários, sem nenhuma prestação de contas para o povo. O espaço público parece uma abstração: em benefício próprio tudo é permitido! A apropriação indevida, propina, presentinhos de luxo, boa comida em restaurantes caros, destruição do meio ambiente, empreendimentos milionários, segregação e exclusão dos que não podem consumir. A democracia brasileira é uma pilhéria das quais todos fazemos parte. Gargalhamos sarcasticamente das sessões ordinárias no plenário municipal, quando na realidade deveríamos avaliar seriamente esta tragicomédia de erros em que se transformou o circo da política partidária.


Todavia, para o senso comum, acostumado à impunidade histórica neste país, responsabilizar os criminosos que passeiam pela câmara de vereadores, resorts ou templos de consumo, ainda é algo inimaginável. O que deve ficar claro, entretanto, é que tal operação despertou a sociedade civil de uma sonambulia acachapante. As próximas eleições municipais serão um termômetro decisivo do quanto as atuais e anteriores gestões políticas do executivo/legislativo municipal se refletiram na opinião pública. Ainda que saibamos os limites da democracia representativa, os movimentos sociais e lideranças comunitárias em Florianópolis precisam estar mais do que nunca organizadas e atentas aos deslizes dos(as) que se julgam acima de qualquer Lei.

domingo, 29 de abril de 2007

Bento XVI e o ranço medieval




Por Jéferson Dantas


A visita do papa Bento XVI ao Brasil é uma tentativa de consolidar o espaço perdido do catolicismo na América Latina nas últimas décadas. Com uma organização apoteótica, própria dos grandes espetáculos, Joseph Ratzinger (o verdadeiro nome do papa) se apresenta em suas muitas visitas internacionais como o paladino mais fervoroso do conservadorismo religioso mundial, seguindo à risca os passos de seu antecessor, João Paulo II. Ligado à juventude hitlerista na década de 1940, Ratzinger pertenceu por mais de duas décadas à Congregação para a Doutrina da Fé que, historicamente, vinculava-se ao Tribunal da Santa Inquisição. Foi Ratzinger que impôs ao teólogo e ex-frade brasileiro Leonardo Boff, o silêncio obsequioso, devido à sua relação com a Teologia da Libertação.



Tratar de questões religiosas num país de forte matriz católica como é o caso do Brasil, não é uma tarefa fácil. Diria até que é inglória. Joseph Ratzinger e o seu séqüito de cardeais, tendo como cenário o Vaticano, é uma continuidade anacrônica de um mundo medievalizado, quando a Igreja Católica detinha forte influência política, econômica e espiritual. Deixar de apontar os inúmeros crimes em nome da fé realizados pelas missões jesuíticas na América, acompanhados da política da cruz e da espada dos saqueadores europeus, devem ser (re) lembrados em momentos como este da visita de Bento XVI. O que dizer, por exemplo, da conivência da ala conservadora do catolicismo nacional durante a Ditadura Militar (1964-1985)?



Além dos aspectos supracitados, temas polêmicos como AIDS, utilização de preservativos, aborto, são tratados por Ratzinger de forma desumanizada. Naquilo que é mais terreno e próprio dos embates sociais, o papa procura omitir ou renegar à esfera do divino, desprezando a historicidade da própria instituição que defende. Penso ainda ser uma grave ofensa às demais religiões praticadas no Brasil, a forma como a mídia de massa ressalta o catolicismo, esmagando o sincretismo espiritual de um país particularmente pluralista. Logo, devemos compreender no terreno da História que a mistificação religiosa tem diversos reveses e que são construídas por seres humanos. O deslumbramento diante do paramento medieval oculta segregações, preconceitos, opções políticas equivocadas e cegueira coletiva.

segunda-feira, 23 de abril de 2007

A miséria da pós-modernidade



Jéferson Dantas


O pensamento pós-moderno já foi alvo de intensas críticas, principalmente dos teóricos marxistas. Em grande medida, tal crítica deve-se ao caráter caricatural que os pós-modernos imprimem em suas análises, apoiados em “fontes filológicas, sem nenhuma significação teórica”, conforme expressões de Antonio Gramsci (1891-1937). Os pós-modernos podem se achar detratados, excomungados do panteão das ‘grandes teorias’, mas isto tem uma razão de ser.

No terreno educacional tal exame analítico se faz às invencionices verborrágicas dos chamados pós-críticos que, emaranhados em seus próprios arranjos conceituais, desprezam a própria realidade social. O excessivo relativismo, posicionamentos políticos pendulares e um profundo desapego ao conflito de classes, fazem dos pós-modernos as principais referências dos defensores da ética de mercado. Como se sabe – ou deveríamos saber – a expressão ‘ética de mercado’ já traz em seu âmago uma profunda contradição.

Todavia, se por um lado os pós-modernos ampliaram determinados conceitos e categorias de análise (diversidade, multiculturalismo, gênero, interculturalidade), ao mesmo tempo dissiparam a importância dos movimentos sociais e as suas respectivas experiências concretas. Ou seja: como ainda não superamos o modelo econômico capitalista e como a desigualdade social caminha a passos largos ao longo das últimas décadas, os pós-modernos se contentam com frases de efeito, o fragmento, práticas discursivas e o imediatismo/presentismo, num mundo cada vez mais convulsionado. Acredito que ao relativizarmos excessivamente os conflitos sociais, caímos na armadilha da impotência coletiva. Entre o desespero de uma esquerda pouco aguerrida e o niilismo dos que advogam o cinismo e a indiferença, resta-nos buscar na realidade histórica dialética a compreensão dos fenômenos sociais, problematizando evidências orais/escritas e admitindo nossas próprias contradições.

sábado, 14 de abril de 2007

Paulo Bauer na berlinda



Jéferson Dantas


O secretário estadual de educação, Paulo Bauer, foi hostilizado na maior unidade de ensino de Santa Catarina: o Instituto Estadual de Educação (IEE). Em grande medida, tal situação ocorreu pelo fato do secretário não respeitar um processo democrático envolvendo as comunidades escolar e local. A prepotência de Bauer, que num passado não muito distante, desqualificou os educadores catarinenses alcunhando-os de “baderneiros”, encontra agora um novo episódio neste território de correlação de forças entre a sociedade política e a sociedade civil, ou seja: o embate com o Fórum do Maciço do Morro da Cruz (FMMC).

O FMMC passou a se organizar politicamente em meados de 2000, reunindo lideranças comunitárias dos morros e encostas de Florianópolis e trabalhadores em educação de dez escolas públicas estaduais e quatro centros de educação infantil mantidos pelo Estado. O público escolar é constituído principalmente por crianças e jovens em situação de risco social, portanto, a existência do FMMC como movimento social de base tem procurado investigar as demandas sócio-educativas destes estudantes com a construção de currículos diferenciados e uma formação continuada que privilegie as reivindicações pedagógicas dos educadores. Nesta direção, o FMMC não é tão-somente um “amontoado” de escolas que estão brincando de fazer “revolução”, como enfatizou o assessor direto do secretário estadual de educação. Reconhecer que há, de fato, um movimento social em Florianópolis e que a contra-hegemonia está no campo das contradições da lógica do capital, parece-me pertinente neste conflito que é próprio das opções políticas, relações de poder hierarquizadas e arranjos ideológicos diferenciados.

Por fim, ainda que a Gerência Regional de Educação (GEREI) e a Secretaria de Desenvolvimento Regional da Grande Florianópolis (SDR) tenham sinalizado a nomeação dos diretores eleitos diretamente nas escolas do FMMC, Bauer tem emperrado o processo numa demonstração antidemocrática e que poderá, inclusive, desgastá-lo politicamente. A autonomia política e pedagógica nas escolas públicas deve ser exercitada pelas comunidades escolar e local como algo permanente, pois esta é uma das condições da plena cidadania. Cabe ao secretário estadual de educação repensar a forma como dialogará com o FMMC e com a organização sindical da classe docente nos próximos dias.
OBS: Os créditos da foto são do fotógrafo Jaime Tavares do Jornal A Notícia, Joinville/SC.


domingo, 8 de abril de 2007

Organizar-se é preciso!



Jéferson Dantas


As relações humanas estão cada vez mais embrutecidas, coisificadas. O corre-corre das grandes cidades, com seus milhões de automóveis poluentes, a individuação martirizante que promove todo tipo de adoecimento orgânico ou psíquico está na ordem do dia. A produtividade pela produtividade, a ansiedade coletiva que leva ao cansaço e ao sentimento de fracasso... Todos estes elementos estão inextricavelmente relacionados ao modelo econômico capitalista. Nesta direção, desacelerar é extremamente necessário, pois representa a salvaguarda de uma existência mais sadia, equilibrada emocionalmente e potencializadora de novos projetos sociais.
No outro extremo das implicações da sociedade capitalista temos a exclusão de vários segmentos sociais, a violência estrutural, a criminalização dos movimentos coletivos, o Estado paralelo com suas milícias de crianças e jovens que deveriam estar na escola. Tudo corrói. Condenamos a farra do boi como violência ambiental, mas milhares de crianças abandonadas nas ruas dos grandes centros urbanos não são considerados crimes de Estado. As contradições da lógica do capital assumem seu lado mais cruel quando nos deparamos com as armadilhas de sua própria arquitetura da competitividade, das humilhações sistemáticas de dirigentes de empresas ou dos ‘chefes’ das repartições públicas com todo o seu aparato hierárquico e burocratizante.
O modelo capitalista reinante para ser superado exige uma compreensão coletiva histórica de suas conseqüências para o futuro do planeta. Isto significa dizer que a sociedade civil teria de se organizar numa esfera contrapública, isto é, como as esferas públicas não dão conta das demandas coletivas, as organizações populares assumiriam as ações transformadoras da produção social e, consequentemente, redefiniriam o processo democrático em bases mais radicais. Para tanto, torna-se urgente que as lideranças comunitárias apropriem-se de sua historicidade, que estabeleçam suas próprias condições de convivência e laços de solidariedade, buscando a construção da contra-hegemonia possível.

quarta-feira, 28 de março de 2007

O Mito de Procusto


Jéferson Dantas


A visão politicamente correta ou os ajustamentos teóricos compatíveis com explicações abrangentes ou instrumentais têm reduzido a capacidade do sujeito coletivo em problematizar questões naturalizadas, socialmente. Na mitologia grega, Procusto convidava incautos para passar a noite em sua casa e repousar em sua cama de ferro; porém, caso o(a) visitante não tivesse as medições adequadas para cama, o(a) mesmo(a) era esticado(a) ou tinha suas pernas serradas. O mesmo tem ocorrido com o poder de discernimento dos seres humanos. Quando temos nossa capacidade reflexiva decepada ou achatada, reproduzindo dados descontextualizados, não conseguimos exercer efetivamente o nosso ‘ livre pensar’.

Nesta direção, quantas potencialidades humanas já foram jogadas no ralo? Quantos homens e mulheres rotulados como irrecuperáveis ou desajustados sociais tiveram suas existências ceifadas pela exclusão virulenta? Quando não expressamos nossos sentimentos ou quando não conseguimos argumentar qualquer situação que nos afeta, tornamo-nos servos obedientes da ‘lógica do capital’, representada no consumo desenfreado e frenético. A participação dos indivíduos na sociedade se reduz ao quanto ele pode adquirir e não o quanto ele é essencial na construção das políticas públicas.

A estupidez humana, a ignorância sistemática e um profundo mal-estar que nos abala neste início de milênio, apenas confirma que o ‘presentismo’, o ‘aqui e agora’, seqüestraram nossas identidades coletivas sem nenhum ressentimento. Enquadrar-se na lógica do capital é aceitar que nenhuma outra construção social é possível. Que podemos continuar despejando toneladas de lixo tóxico nos mares e rios do planeta, porque estamos certos da impunidade. Não quero que estiquem ou amputem as minhas pernas. Quero poder me movimentar livremente pela turba e ter autonomia para pensar diferente. É pedir demais?


sexta-feira, 16 de março de 2007

A criança e a educação ambiental



Por Jéferson Dantas


O referencial curricular nacional para a Educação Infantil elaborado pelo Ministério da Educação em 1998 traz inúmeras orientações didáticas para os(as) educadores(as) que lidam com crianças na faixa etária entre 0 e 6 anos. Recentemente, foi aprovada uma nova Lei que determina que as crianças passem a cursar a 1ª. Série do Ensino Fundamental aos seis anos de idade, o que tem reconfigurado a própria estrutura da educação infantil em todo o país. Em linhas gerais, o referencial curricular propõe uma série de atividades de investigação, socialização e de manifestações lúdicas que as instituições de educação infantil precisam oferecer para as crianças, alicerçado sempre nos contextos sociais onde as mesmas vivem. Apesar do seu alto teor propositivo, o referencial curricular traz importantes indicações metodológicas aos profissionais da educação infantil, principalmente no que concerne às interfaces entre o ‘mundo da criança’, a sociedade e a natureza.



Embora tenha se transformado num lema surrado, afirmar que as crianças representam o futuro da humanidade nos dias de hoje, torna-se cada vez mais relevante, essencial. A consciência ambiental que as gerações anteriores não tiveram e que tem ocasionado uma série de desastres ecológicos no mundo inteiro chegou a um patamar intolerável. Mais de um bilhão de pessoas no mundo já não têm acesso à água potável. O desmatamento indiscriminado passa ao largo da inoperância das autoridades públicas. Alertas de organizações não-governamentais como o Greenpeace há muito apontam o desaparecimento de várias espécies marinhas e terrestres. Neste ritmo, o ser humano será o próximo a entrar em extinção. Mas, antes, sofrerá os efeitos lancinantes dos verões intermináveis, da falta de água e comida, da ausência de coleta de lixo tóxico e do tratamento inadequado dos dejetos que escorrem pelos canais de esgoto, poluindo rios e mares. Não é uma visão apocalíptica. É o resultado do desrespeito que temos com a preservação de nossa própria espécie.



As crianças são muito afeitas às questões que envolvem a destruição da natureza. Entretanto, muitas delas vivem em contextos sociais onde a coleta do lixo, água encanada e o tratamento do esgoto ainda é um sonho. Por outro lado, as instituições de educação infantil em Santa Catarina e no Brasil como um todo não consegue atender a demanda desse público escolar e, em variados casos ou situações peculiares, creches e centros de educação infantil se transformam em verdadeiros depósitos de crianças, perdendo o seu valor educativo/formacional. Repensar o modelo de educação infantil no Brasil e, consequentemente, valorizar e formar profissionais capacitados para esse nível de formação, além de imprescindível e urgente, seria uma conquista formidável para um país com milhares de crianças fora da escola.


A violência na escola




Por Jéferson Dantas


A violência na escola quando ganha as páginas dos periódicos tem, em linhas gerais, apenas uma face: ora expõe os educadores como autoritários e punitivos, ora expõe os estudantes como verdadeiros criminosos ou delinqüentes. Quando não se procura compreender a violência estrutural, marcada sobremaneira pelo modelo econômico adotado no mundo, não é possível analisar a contento a cultura escolar e, principalmente, os mecanismos de exclusão, humilhação e enfrentamento no universo educativo. Tanto educadores como estudantes estão em contextos de violência física ou simbólica. Afinal, péssimas condições de trabalho, cargas horárias desumanas, salários aviltantes não é uma violência? Além disso, há de se acrescentar que a organização escolar calcada nos moldes tradicionais, baseada em avaliações certificativas e no monismo pedagógico, dificilmente consegue atrair a atenção do público escolar, principalmente àquele que necessita de mais atenção e de práticas pedagógicas diferenciadas no processo de alfabetização e internalização do conhecimento.

Recentemente, a UNESCO produziu um relatório sobre a educação na América Latina afirmando que a escola ‘produz violência’. Não há aí uma inversão dos termos? Será que a escola representa um mundo social à parte? Ela não sofre os efeitos da desigualdade social, do desemprego, da fome? Os sistemas de ensino não fazem qualquer interferência na autonomia pedagógica das escolas? Ora, os educadores são seres de carne e osso e muitas vezes encontram-se no seu limite físico e psíquico; da mesma maneira, os estudantes são provenientes de diferentes contextos sociais e não podem ser avaliados e formados homogeneamente. Evidente que a escola pode reforçar a violência estrutural através de seus aparatos normativos, logo, é necessário repensar seu currículo, como o conhecimento está organizado, partilhar diferentes práticas pedagógicas com os pais, educadores e estudantes e reavaliar o que está proposto no projeto político-pedagógico de cada unidade de ensino. Quando educadores, pais e estudantes sentem-se pertencentes à escola, a violência diminui sensivelmente.

Nessa direção, é bastante preocupante tratar a violência escolar como simplesmente um caso de polícia. Mas, se tivermos a sensatez de compreender a violência como um fenômeno histórico e que as escolas também são construções sócio-históricas, sofrendo os dilemas e/ou desafios de seu tempo, teremos condições de avaliar este lugar social a partir de um outro enfoque. Determinismos históricos, afirmações categóricas e irresponsáveis ou a mera desqualificação dos educadores, estes sim são fomentadores de violência.

terça-feira, 6 de março de 2007

A formação dos educadores


A importância da travessia na formação dos educadores

Por Jéferson Dantas


A formação de futuros educadores é um dos principais desafios em Santa Catarina e no Brasil como um todo. As demandas do mundo contemporâneo exigem dos (as) educadores (as) mais do que uma formação instrumental, razão pelas quais milhares de estudantes da Educação Básica encontram-se cada vez mais despolitizados e alheios ao modelo econômico vigente. As lacunas da formação inicial nas universidades não são os únicos entraves, já que as próprias instituições educacionais necessitam repensar os seus currículos e o processo de democratização de suas instâncias de deliberação coletiva (Associação de Pais e Professores, Grêmios estudantis e Conselhos Deliberativos).


Para o educador estadunidense Henry A. Giroux a racionalidade instrumental na formação inicial tem ‘treinado’ os educadores para obedecerem a pacotes curriculares oficiais das quais não opinaram ou não construíram coletivamente. Embora esta seja uma realidade dos Estados Unidos, no Brasil as políticas públicas educacionais têm seguido esta mesma corrente há alguns anos. A lógica institucional neo-tecnicista é preocupante, já que desvaloriza ou desqualifica a função social mediadora do (a) educador (a), tornando-o um mero repassador de conteúdos disciplinares descontextualizados. A politização dos (as) educadores (as) ao perder seu lugar para a mera instrução, empobrece o caráter epistemológico das diferentes áreas do conhecimento, sedimentando práticas pedagógicas desideologizadas e sensíveis à escamoteação do que efetivamente precisaria ser ensinado nos bancos escolares.


A travessia dos (as) educadores (as) em sua formação inicial/continuada é bastante árdua, tendo em vista as precárias condições de trabalho e uma carga horária muitas vezes desumana na Educação Básica. Um (a) educador (a) que lê pouco, que não freqüenta espaços culturais diferenciados e não reivindica sua autoria na construção de seu projeto existencial, dificilmente superará sua condição de subalternidade. A luta permanente da classe docente na valorização de seu ofício é o caminho possível para a mudança desse panorama. Caso contrário, continuar-se-á formando crianças e jovens menos solidários (as), insensíveis à violência estrutural e indiferentes à banalização da sociedade de consumo, cada dia mais individualizada e a mercê da manipulação da indústria cultural.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

A Síndrome de Burnout


A Síndrome de Desistência do Educador e a necessidade do reencantamento nos limites do fazer pedagógico

Prof. Jéferson Dantas

1. Considerações Iniciais:


A priori, poderíamos dizer que a Síndrome de Desistência do educador ou Síndrome de Burnout é um sintoma bastante presente na vida de qualquer trabalhador em educação. Porém, nunca a sistematização e o aprofundamento desta síndrome foram tão importantes para compreendermos o porquê de este profissional estar perdendo o seu vigor no ambiente escolar, ou melhor, o porquê de estar tão desvitalizado e sem ânimo para continuar acreditando em seu ofício.


Primeiramente, deve-se perceber que esta síndrome é multidimensional, ou seja, carrega consigo pelo menos três elementos essenciais: A) Despersonalização; B) Exaustão emocional; C) Falta de envolvimento pessoal no trabalho. Logo, estes três elementos revelam uma situação em que os educadores percebem esgotada a sua energia e os “recursos emocionais próprios”, além de desenvolverem atitudes negativas e cínicas em relação aos educandos. O endurecimento afetivo dos educadores torna as relações no ambiente escolar coisificadas, afetando sua prática pedagógica cotidiana (CODO, 1999, p.238).


É bem verdade que há variados ingredientes estruturais coadunados que reforçam esta síndrome, que vão dos salários indignos até a ausência de suporte sócio-afetivo na Escola. Os problemas familiares e econômicos, também podem ser apontados como obstáculos na eficiência do(a) educador(a).


Os educadores, embora tenham controle sobre o seu trabalho (todas as etapas do processo de produção do conhecimento), sofrem psiquicamente quando não conseguem atingir os seus objetivos pedagógicos. Este sofrimento quando não encontra um restauro imediato, tende a internalizar no educador uma sensação constante de impotência diante das demandas estruturais e conjunturais em seu ambiente de trabalho. Não há alternativas mágicas para superar a síndrome, nem tampouco uma solução clínica que possa resolver os desequilíbrios somatizados pelo corpo ao longo de um ano letivo. Entretanto, podemos apontar alguns caminhos que possam promover a amenização da síndrome ou condicioná-la de uma forma que não atinja o estágio da estagnação total do (a) profissional.

2. Troca de Experiências Pedagógicas e culminância de projetos coletivos

Entendendo que a dimensão pedagógica e o ofício do educador como um todo, necessita ser constantemente repensado no ambiente de cada escola, assim como a identificação dos principais obstáculos no processo ensino-aprendizagem, ressaltamos a relevância de intercambiarmos práticas e saberes coletivos. Nós, educadores, de maneira geral, somos ruins de marketing. Não sabemos fazer propaganda de nossas aulas. Acreditamos na maioria das vezes que as tarefas que propomos aos nossos alunos são simplistas e desinteressantes. Ledo engano. Atualmente, as relações humanas encontram-se cada vez mais pulverizadas. Há pouco tempo para o diálogo, há pouco tempo para o sublime e a contemplação. Como nos ensina Paulo FREIRE, precisamos fugir do discurso fatalista dos governos neoliberais e acreditar numa força capaz de arregimentar uma “nova rebeldia (...) a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana” (2003 p. 129). Dizer isso é radicalizar o espírito dos educadores. Mostrar-lhes que os caminhos são áridos e depende de toda uma organização pessoal e material.
Os saberes e as práticas destes educadores quando culminam em projetos coletivos, desencadeiam uma catarse fantástica. O registro destas experiências pedagógicas, agrupadas em áreas disciplinares, é que dão visibilidade a estas práticas, seja através de oficinas ou seminários, possibilitando uma intervenção mais sistemática por parte dos educadores. Urge, pois, romper os grilhões que condicionam o saber escolarizado a um saber menor, sem validade científica.

2.1. Espaço de trabalho também é espaço de criação

Atender clientelas tão díspares, com perfis sociais tão diversificados exige dos trabalhadores em educação uma formação que vai além daquela recebida nos bancos de uma universidade (formação inicial). A formação continuada possibilita ao educador estar atento ao seu tempo, ser protagonista e ao mesmo tempo coadjuvante no momento das decisões coletivas, desenvolvendo capacidades para “novas formas de utilização dos saberes, com o rompimento das barreiras na divisão das áreas estritas de conhecimento e trabalho” (GATI, 1997, p. 95).


É natural que às novas exigências das transformações do mundo do trabalho, que coisificam as relações humanas a patamares semelhantes às da 1a. Revolução Industrial, os trabalhadores em educação sejam chamados a uma imensa responsabilidade: reduzir as fronteiras que separam os alfabetizados plenos dos alfabetizados funcionais. A leitura do mundo está exigindo muito mais do que decodificações precárias de textos impressos, de informações fragmentadas retiradas de um site da internet ou de uma manchete de um semanário. Soma-se a isto, a enorme leva dos analfabetos digitais, excluídos por não poderem acompanhar o avanço incessante da microeletrônica.


Diante disso, os educadores não podem se isolar. A criação é um processo muito rico, embutido nos planejamentos coletivos e em consonância com o PPP (Projeto Político Pedagógico) da unidade escolar. Um ambiente de trabalho criativo é um ambiente dotado de possibilidades pedagógicas. Mas, acima de tudo, é um ambiente onde os trabalhadores em educação se sentem à vontade para trocar idéias, onde impera a construção do conhecimento e a ludicidade necessárias para se promover um locus sadio de interatividade intelectual.

2.2. Trabalhadores em educação: domínio do conhecimento científico

Ter domínio de sua área de conhecimento parece ser algo óbvio quando nos referimos aos educadores. No entanto, não é o que tem ocorrido ultimamente. O domínio do território epistemológico por parte do educador é que o torna um diferencial na análise de um fenômeno físico-químico ou de um fenômeno social. Porém, seja pela defasagem da formação inicial e a ausência de uma formação continuada a contento, os educadores estão em grande medida aquém das necessidades exigidas pelo mercado típico de trabalho.


Logo, a postura profissional dos trabalhadores em educação necessita, efetivamente, ser de intervenção pedagógica constante. O enfrentamento, as atitudes afirmativas tomadas nos momentos de conflito, fazem com que os educadores se tornem peças fundamentais na construção do projeto pedagógico da Escola. Um educador feliz, apaixonado, que materializa suas utopias, consegue contagiar seus alunos. Isto só é possível quando a gestão na unidade escolar é democrática, quando todos os educadores, educandos, especialistas e funcionários agem de maneira uníssona, pois sabem que as instâncias de deliberação coletiva (Conselho Deliberativo, APP e Grêmio Estudantil) possuem legitimidade. Uma gestão autoritária, desplugada da realidade da comunidade escolar, tende a reforçar exclusões e o isolamento de seus sujeitos partícipes.


Tendo em mãos um planejamento estratégico, que possa diagnosticar com maior precisão as prioridades, metas e ações transformadoras no ambiente escolar, conduz os trabalhadores em educação a um processo de superação de práticas pedagógicas viciadas e desarticuladas com o PPP da unidade escolar. Entendemos que o desafio das gestões democráticas é o de motivar todos os seus profissionais num projeto coletivo sólido, que possa servir de referência para todos os educadores compromissados com o seu ofício social. As lideranças agregadoras devem ser identificadas no interior do universo escolar, objetivando a protagonização destes sujeitos potencialmente criativos em circunstâncias de desmobilização grupal.

3. Considerações Finais

Não podemos ser simplistas ou ingênuos a ponto de acreditar que o empenho dos educadores resolverá todas as demandas de uma Escola. Evidente que os educadores são os agentes diretos pelo maior ou menor avanço do processo ensino-aprendizagem de uma classe de educandos. Mas, o que fazer quando estes profissionais deixam de ter compromisso com a Escola? Quando começam a se ausentar sistematicamente e apresentar atestados médicos freqüentes? Quando sabotam os projetos coletivos e se posicionam como lideranças desagregadoras? Quando se orgulham em menosprezar a equipe pedagógica, acreditando que estão sempre certos e que só eles – professores- trabalham na Escola?


Os educadores sofrem, porque estão no atual momento histórico, sentindo-se desamparados. Desamparados pelo Estado, que não investe na sua formação continuada e não consegue estabelecer uma política salarial mais equânime; sofre, porque não é atendido pela unidade escolar no que tange aos recursos necessários para favorecer o processo ensino-aprendizagem; sofre, porque acredita que perdeu tempo no Magistério, porque viu seus ‘amigos’ se darem bem na vida, adquirindo bens materiais impensáveis para o seu padrão aquisitivo.


A Síndrome de Burnout, neste sentido, só poderá ser combatida de maneira orgânica. Atacar seus pontos fortes (despersonalização, exaustão emocional e falta de comprometimento) exigirá uma reorganização política da classe docente e um sentimento de pertença ao ambiente escolar.
Enfim, no epicentro de todos estes tensionamentos, a única saída para amenizar a síndrome, é compreender que a insatisfação do trabalho docente não pode ser desconectada de todas as demais instâncias deliberativas da Escola e das políticas públicas implantadas até o momento. O percurso é sinuoso, repleto de percalços e resistências. Mas pode ser menos doloroso psiquicamente se o trabalhador em educação puder ter momentos de discussão na escola, onde suas angústias possam ser canalizadas a partir de todo um dinamismo dialético histórico. A desistência sistemática dos professores, infelizmente, só agravará o quadro já caótico do ensino público no país.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


CODO, Wanderley (Coordenador) Educação: carinho e trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes/ Brasília: CNTE: UnB: Laboratório de Psicologia do Trabalho, 1999.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 26 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

GATTI, Bernardete Angelina. Formação de Professores e carreira: problemas e movimentos de renovação. Campinas, SP: Autores Associados, 1997.

VIEIRA, Sofia Lerche (Org.). Gestão da Escola: desafios a enfrentar. Rio de Janeiro: DP & A Editora, 2002.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Cinema Político


O cinema político no Brasil

Jéferson Dantas



O filme de Sergio Rezende, Zuzu Angel (2006), consegue nos despertar de certa sonambulia em tempos de despolitização, violência generalizada e ausência de solidariedade. Com extrema sensibilidade, Rezende e toda a equipe técnica de produção, levam-nos aos subterrâneos da repressão militar no Brasil durante a década de 1970. Amargas reminiscências de um período histórico tão presente e assustadoramente brutal. Arrogância e poder sem limites das Forças Armadas, com seus torturadores de plantão e práticas de suspeição em todos os setores sociais. Imprensa amordaçada, artistas exilados, estudantes presos e espancados. Tudo com a conivência do Tio Sam, o ‘grande irmão’ da América.

Rezende é um dos poucos cineastas brasileiros comprometidos com o chamado ‘cinema político’ (talvez a expressão ‘cinema engajado’, não seja a mais apropriada). Remexer as feridas de uma ditadura que acabou ontem não é tarefa simples. Quantos pais tiveram seus filhos presos, torturados e assassinados pela repressão e nunca puderam enterrá-los? E, os que sobreviveram aos eletrochoques, paus-de-arara e outras ‘tecnologias’ de tortura, convivem com os fantasmas dos torturadores, inevitavelmente. Num Estado de exceção, setores conservadores da igreja católica e do empresariado nacional que engordou seus bolsos à custa das benesses dos anos de chumbo, tudo era permitido em nome da segurança nacional. A humilhação, a despersonalização de homens e mulheres envolvidos com a militância política, era tratada de forma meticulosa pelo aparato repressor; era fundamental ainda que os(as) torturados(as) confessassem até o que não sabiam, que chegassem ao limite de sua sanidade física e mental.

Zuzu Angel foi um exemplo de luta pelos direitos humanos em nosso país. Uma mulher que criou três filhos numa época em que ser ‘desquitada’ era sinônimo de ‘mulher à-toa’; que teve um filho assassinado pela repressão militar e foi até às últimas conseqüências para descobrir o seu paradeiro; que enfrentou os júris militares cênicos até ser assassinada em 1976. Talvez para boa parte da classe média brasileira, os tempos auriverdes sejam lembrados como de respeito à pátria, de sensação de segurança e combate aos subversivos. Para mulheres e mães como Zuzu Angel – e aqui uma referência às mães da Praça de Maio na Argentina –, o gosto amargo da ditadura não lhe tirou apenas um filho, violentamente. Antes, porém, deu-lhe uma consciência política e um poder de mobilização que muitos não tiveram coragem de fazer naquela época. Como até hoje não fazem.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

O professor terceirizado



Jéferson Dantas


Não bastasse a precariedade das condições de trabalho com que os trabalhadores em educação se deparam em todos os níveis de ensino, surge uma nova modalidade de expropriação do trabalho intelectual desses profissionais: o professor terceirizado. A polêmica foi assunto da Folha de S.Paulo no ano passado e reacendeu uma velha discussão: até quando os educadores brasileiros continuarão exercendo seu trabalho sem qualquer dignidade e respeito ao seu ofício? Só no estado de São Paulo são 15 mil educadores do setor particular que estão nessa condição aviltante. O modelo de contratação dos professores é idêntico dos funcionários de limpeza e segurança, ou seja, contratos temporários e dependentes de uma demanda focalizada. A terceirização é realizada através de uma cooperativa e as instituições contratantes ficam livres de encargos trabalhistas, tais como FGTS, férias e décimos terceiros salários. A ‘economia’ na folha de pagamento chega até 50%. Um grande negócio à custa de uma mão-de-obra qualificada, porém, precarizada.



O impacto pedagógico também é imenso, pois os professores não recebem qualquer benefício caso sejam demitidos ou tenham de faltar por motivo de doença. A elevada rotatividade também é comum, pois os professores não criam vínculos com aquele espaço educativo. O que ocorre na prática é uma deturpação do cooperativismo, pois apenas uma parte – o dono da instituição de ensino – é que sai ganhando. Não há divisão dos lucros. Em grande medida, esta foi a saída nada honrosa dos donos de escolas de São Paulo, realidade também presente em várias partes do país, para amenizar a diminuição das matrículas tanto na educação básica como no ensino superior.



Sendo assim, com o setor educacional privado em crise as políticas públicas educacionais precisam promover a valorização dos educadores, tendo em vista que já há no Brasil vagas ociosas no ensino médio devido aos baixos salários. A qualificação dos educadores nas diferentes e variadas licenciaturas associado a um piso salarial nacional digno, reduziria bastante a procura por instituições particulares que exploram a mão-de-obra docente, ferindo inclusive princípios trabalhistas. Reforçar qualitativamente a educação básica pública é apostar num projeto de formação em longo prazo, o que trará, sem dúvida alguma, mudanças significativas em diversos setores produtivos da sociedade brasileira.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2007

Ofício de historiador


Passado-Presente-Passado

Jéferson Dantas



Se não podemos exigir do passado o que ele não foi, tampouco podemos exercer destemperadamente, a futurologia. O “se” para os historiadores de ofício não existe. Entretanto, foi lá no passado que nos constituímos. Ele – o passado – é a substância do presente, onde lidamos com situações-problema não totalmente resolvidas e que nos servem como subsídios para a tomada de decisões. Na dimensão passado-presente-passado a dialética funciona como interlocutora do vivido e do que precisa ser ainda construído, portanto, exercício permanente de elaboração e reelaboração de aprendizagens significativas.

O passado não silencia e nem condena. Promove, porém, diferentes análises interpretativas do que ficou consagrado em documentos oficiais, livros, cartografias, atas, iconografias ou qualquer outro registro histórico. É justamente aí que reside a importância do passado: não repisarmos as mesmas ações equivocadas ou naturalizarmos a idéia de que tudo já foi dito ou pensado. Para o senso comum a ‘história sempre se repete’; para o pensamento histórico os acontecimentos nunca se repetem da mesma maneira, pois sendo frutos das ações humanas eles nunca podem ser recuperados tal como uma imagem estática, sem ruídos ou rupturas. A dinâmica do ‘pensar a história’ é resultado de indagações que fazemos ao presente, num processo dialógico coerente e constante com o passado.

Nesta direção, ainda que não seja possível recuperarmos o passado tal como ele foi - como ansiavam os positivistas -, podemos dar novos sentidos ao passado, vislumbrar nuanças ofuscadas por julgamentos precipitados. Recontar determinados recortes históricos situados em diferentes e variadas dimensões espaciais/temporais, exige dos historiadores mais do que uma colagem dos fatos; exige, sobretudo, uma mediação permanente, que nunca se esgota ou esbarra na primeira dificuldade pela ausência de fontes. Levando essa aprendizagem para a nossa experiência social mais concreta ou objetiva, o passado tem muito a nos ensinar. O passado é o nosso inventário material-afetivo, refundando metas e novas respostas para indagações supostamente insolúveis. Assim, para problemas semelhantes posicionados no presente, não podemos dar a mesma resposta insuficiente do passado, pois nossa memória social ou a nossa experiência coletiva já não é a mesma; ganhou contornos mais sofisticados e exigentes. Logo, tal como nos ensinou o poeta gaúcho Mário Quintana, ‘o passado não reconhece seu lugar: está sempre presente’.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Na voz de Bethânia, o texto de Pessoa...



Conta a lenda que dormia uma Princesa Encantada a quem só despertaria um Infante, que viria de além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, vencer o mal e o bem, antes que, já libertado, deixasse o caminho errado por o que à Princesa vem. A Princesa adormecida se espera, dormindo espera, sonha em morte a sua vida, e orna-lhe a fronte esquecida, verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, sem saber que intuito tem, rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado, ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino. Ela dormindo encantada, ele buscando-a sem tino pelo processo divino que faz existir a estrada. E, se bem que seja obscuro tudo pela estrada afora, e falso, ele vem seguro, e vencendo estrada e muro, chega onde em sonho ela mora. E, inda tonto do que houvera, à cabeça, em maresia, ergue a mão, e encontra a hera, e vê que ele mesmo era a Princesa que dormia.

(Eros e Psiquê - Fernando Pessoa)

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Poesia grega


A importância histórica na obra de Hesíodo

Jéferson Dantas


A poética grega é um dos grandes mananciais da literatura ocidental. Nela se fundem ou se ressignificam os elementos estudados por poetas das gerações posteriores, ou seja, escritores dos períodos medieval, moderno e contemporâneo. Os temas da poesia grega vão da Epopéia à Lírica e desta última para a Alexandrina, já no período helênico. Um dos grandes nomes da poesia grega, sem dúvida, foi Hesíodo.

Acredita-se que Hesíodo nasceu na Beócia, em Ascra, deixando como legado duas importantes obras para a humanidade: Teogonia e os Trabalhos e os Dias. É possível observar na escrita de Hesíodo um estilo semelhante ao de Homero, embora de temáticas opostas. Hesíodo é o poeta do período arcaico grego, época de intensas turbulências no meio agrário. Se, por um lado, Hesíodo se afasta da temática social descompromissada de Homero, por outro ele vai empregar a mesma métrica e, praticamente, o mesmo vocabulário de Homero em suas narrativas. Supõe-se que 80% do vocabulário utilizado por Hesíodo sejam comuns àquelas utilizadas por Homero na Ilíada e na Odisséia.

Além disso, fica patente nas obras de Hesíodo o caráter didático. Na Teogonia ele faz uma explanação do universo a partir das divindades mitológicas. Metaforicamente, o poeta quer nos contar a origem do universo, servindo-se para tanto destas divindades perenes e austeras. No interior daquele contexto histórico (século 8 a.C., aproximadamente), Hesíodo nos traz com a pujança de sua poesia a manifestação de uma época de lutas entre grandes latifundiários e a população expropriada de qualquer espécie de privilégio. Cabe ressaltar que os desprivilegiados não são apenas os camponeses, mas todos os pastores e pequenos artesãos que começam a formar uma classe cada vez mais numerosa. Conforme o crítico literário e escritor Donaldo Schüller, “já não é possível silenciar a luta de classes, abafada nos poemas homéricos com o predomínio absoluto dos aristocratas e seus nobres”.

Embora didático Teogonia tem fortes elementos morais, formalizada pelo perjúrio dos deuses. As divindades gregas são as responsáveis pela ‘justiça’, controlando os homens em seus excessos e até mesmos em suas paixões. Porém, o que Hesíodo procura denunciar é a sociedade que corrompe e uma religião que tão-somente resigna o ser humano. O poeta de Ascra é o porta-voz da classe camponesa. Em Os trabalhos e os dias, Hesíodo lamenta a sorte dos fracos e despossuídos, assinalando a única atitude que lhes convém: a submissão.

Não há como negar que Hesíodo foi o mais importante poeta grego depois de Homero, nem tanto pela grandiosidade de seus poemas ou pela dificuldade em romper com a linguagem epopéica, mas, sobretudo pela sua visão dos acontecimentos sociais da época. Para Werner Jaeger, “o seu pensamento estava profundamente enraizado no solo fecundo da existência campesina [o que] lhe outorgava uma personalidade e uma força próprias, [...] concedido pelas musas desvendar os valores próprios da vida do campo e acrescentá-los ao tesouro espiritual da nação inteira”.

A consideração acima fica mais evidente em Teogonia, quando Hesíodo analisa as divindades tendo como enfoque principal Mnemósine (memória), que representa a mãe das musas. Esta divindade tem uma função psicossocial das mais fecundas, já que para a civilização grega no período arcaico (séculos 8 a 6 a.C.) a escrita era reservada a poucos e a memória – lembrança do passado – denotava a própria divindade. Aí reside toda a riqueza épica deixada por Homero ás futuras gerações – e que influenciaria sobremaneira Hesíodo -, já que o aedo (uma espécie de repentista), por valer-se de sua memória, vai criar a literatura oral épica, culminando na épica escrita do aedo Homero. Hesíodo, desta maneira, trata a memória (Mnemósine) como elevada técnica poética, propondo que a divindade dá ao poeta o dom sobrenatural para a busca da verdade e, com isso, a captura do passado como substância do presente.

Assim como os profetas são inspirados pelos deuses, os poetas são inspirados pela Mnemósine. Poetas e adivinhos são agraciados pela clarividência. O poder de saber as coisas que é dado ao poeta, pela mãe das musas, é explicado por Hesíodo como um dom divinatório. Acredita-se que Hesíodo se utilizou dos mitos de povos semíticos para a construção poética de Teogonia. Independente da influência que estes povos tiveram na obra hesiódica vale ressaltar o aspecto sócio-cultural que o poeta acoberta com uma linguagem sempre dirigida aos deuses, mas que na realidade descortina a repressão dos grandes proprietários rurais.
Para Hesíodo, as idades heróicas do ouro, da prata e do bronze já passaram. Vive-se agora a ‘idade do ferro’, onde a vida é cruel e dura. Para Baldry, “a sua preocupação incide sobre a necessidade de pelo trabalho e pela poupança, o agricultor encher os seus celeiros e de uma manifestação de amargo descontentamento, quanto aos desonestos julgamentos dos reis locais”. Nesta direção, Hesíodo carrega em sua obra uma universalidade onírica profundamente enraizada no chamado inconsciente coletivo, remontando a figura arquetípica estudada por Jung. Muitos poetas contemporâneos bebem do arquétipo para a composição de suas obras, como é o caso do escritor latino-americano Ernesto Cardenal.

Hesíodo não criou uma linguagem poética nova. A epopéia lhe serviu muito bem ao seu espírito arrebatado e justo e, nem por isso deixou de ser compreendido pelas camadas sociais mais empobrecidas. Homero tinha a verve fluídica, porém sintonizada com os interesses aristocráticos. Entretanto, a intensidade poética de Homero e de Hesíodo se assemelhava. Hesíodo, por ter reservado grande parte de seus escritos às reflexões sobre a justiça, antecipará a poesia lírica de Sólon, que era um legislador reformista e que foi diretamente responsável pelos princípios democráticos na Grécia antiga. Por fim, o avanço estilístico alcançado por Hesíodo devido ao seu brilhante nível de abstração, inaugurou uma nova fase na poesia grega denominada “pós-épica”.


REFERÊNCIAS


BALDRY, H.C. A Grécia Antiga: cultura e vida. Lisboa: Ed. Verbo, 1968.

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

SCHULLER, Donaldo. Literatura Grega. Porto Alegre: Ed. Mercado Aberto, 1985.



quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

Ano Novo!

Desafios para o ano que se começa

Jéferson Dantas


O ano de 2007 começa com enormes desafios para o Brasil, principalmente no que se refere à geração de empregos e esforços concentrados do capital produtivo para o crescimento significativo do PIB. Também é o momento do entendimento político e não de bravatas levianas, que tem ceifado tantas vidas inocentes nos grandes centros urbanos devido à violência em larga escala. O Estado burguês nacional precisa se desvencilhar dos fisiologismos, caso contrário, serão quatro anos de políticas sociais compensatórias, de benesses às velhas raposas políticas e uma estagnação econômica sem precedentes. As retóricas palacianas precisam ganhar corpo estrutural e, para tanto, a reforma política é apenas um dos tantos temas de pauta do Congresso Nacional.

Mas, as mudanças políticas e as reformas sociais não são particularidades do Brasil, evidentemente. A execução do ditador Saddam Hussein à véspera do réveillon e a morte de milhares de iraquianos e militares estadunidenses é a maior demonstração de prepotência e arrogância do governo Bush. O arrivismo sem limites das grandes potências econômicas e a fragilidade da ONU para fazer frente ao ‘senhor da guerra’ George W. Bush permanece sendo um desafio mundial. Até quando o império estadunidense continuará fazendo intervenções sistemáticas no Oriente Médio ou em qualquer outro território do planeta? Até quando a Indústria bélica continuará engordando os bolsos daqueles que fazem da guerra seu grande negócio, incentivado, sobremaneira, pelo Estado?

Logo, construir um país ou um mundo melhor não depende apenas de governos representativos, mas da força e organização da sociedade civil, esta sim, potencializadora de grandes projetos sociais, fiscalizadora dos poderes executivo, legislativo e judiciário. A grandeza de uma nação se dá pela inteireza de homens e mulheres comprometidos(as) politicamente, conscientes de sua prática social. Já é chegado o momento de abominarmos a brutalidade do terrorismo de Estado e desnaturalizarmos a miséria social nos quatro cantos da Terra. Afinal, as contradições do mundo do capital são efetuadas por seres humanos e somente estes últimos podem realizar as transformações necessárias para que vivamos de forma solidária e, coletivamente, mais felizes. Bom 2007 para todos(as)!

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

É Natal!


Espírito natalino e realidade social

Jéferson Dantas



O escritor inglês Charles Dickens (1812-1870) nos deixou obras inesquecíveis, dentre elas uma das mais conhecidas: Um conto de Natal (1843). É a história de um velho avarento (Scrooge) brutalizado pelo capitalismo e que explora seus empregados sem qualquer piedade. Na noite de natal recebe espíritos que elucidam sua mesquinharia e o doentio apego aos bens materiais, através de uma viagem pela sua infância, maturidade e velhice. Scrooge ao se deparar com a solidão iminente, reavalia suas ações e deixa a bondade natalina penetrar-lhe avidamente. Entretanto, o contexto da época na Inglaterra era o pior possível. A chamada 2ª. Revolução industrial não conseguia atender a demanda de operários desempregados e a situação de miserabilidade tornava-se flagrante nas ruelas fétidas de Londres, palco do capitalismo em larga escala. Aliás, as contradições do sistema capitalista começavam a ganhar corpo teórico com os primeiros escritos de Friedrich Engels e Karl Marx, que culminaria no Manifesto do Partido Comunista em 1848.

Assim, o tão propalado espírito natalino, encharcado de solidariedade cristã, ano após ano nos submete a este exame de nossas ações diárias, empurrando-nos, literalmente, para o esperançoso reinício de uma nova caminhada. Reconheço, porém, que a nulidade da atual composição de nossa sociedade política tem nos tornado mais amargos e céticos, aliado ao pífio crescimento econômico. A participação popular só é valorizada em relação à sua capacidade de consumo, ou seja, a participação no mercado é mais importante do que a participação nas decisões de cunho político. O dissabor que nos assola está intimamente associado ao fenômeno mundial da despolitização e do espetacular desmonte das organizações sindicais. Logo, como sorrir diante de um quadro social tenebroso? Como ter esperança quando a sociedade civil está mais preocupada com a sua cotidiana (sobre)vivência?

Não quero ser pessimista ou desmancha-prazer. Esta é uma época que voluntariamente ou não somos tomados de uma contagiante esperança no futuro. Muitos e muitas, certamente, reorganizam e limpam gavetas. Despacham móveis antigos. Pintam a casa com cores vivas, convidam amigos e familiares para a ceia, trocam presentes, estabelecem metas para o ano seguinte, etc. Mas, assim como Dickens conseguiu esboçar, literariamente, uma nesga de esperança numa sociedade industrial embrutecida, nós, brasileiros(as), precisamos mais do que nunca nos sentirmos pertencentes a este país. As manobras da sociedade política, os bolsões de miséria, os conchavos entre grupos oligárquicos regionais, baixa escolarização e a violência sem limites, continuam sendo as nossas inconclusas tarefas de um Brasil que desejamos mais feliz, socialmente equânime e ético!

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

A atualidade de 1984


As metáforas de Orwell e a cultura do fragmento

Jéferson Dantas



As categorias analíticas empreendidas no ofício do historiador (tempo, espaço, memória e identidade), permitem ao pesquisador realizar mediações interpretativas em diferentes contextos históricos sem perder de vista o devir social, fruto das ações efetivamente humanas. Entretanto, atualmente, em diversos níveis socioculturais, o que vislumbramos é o desamparo coletivo entremeado nos estilhaços imagéticos que nos empurram para o drama, a cólera e a imobilidade. As utopias foram arrefecidas. Nos termos do educador Paulo Freire, por mais paradoxal que possa parecer, urge “humanizar os homens” antes que se dilacerem de forma definitiva. Nesta direção, a categoria analítica memória se configura como uma referência histórica primordial na apreensão deste mundo envolvido na era do conhecimento e pensamento único.

A idéia de real e desenvolvimento social orquestrados pelas políticas globalizantes e neoliberais estão alinhadas à indústria cultural, que manipulam estrategicamente nossa percepção do mundo. As forças sociais produtivas foram transformadas num imenso palco, repleto de atores/personas cada vez mais individuados, em situações espaço/temporais efêmeras. As memórias coletivas ‘dão livre passagem’ para o instantâneo e, não por acaso, estamos sofrendo lapsos de memória, tal como na metáfora orwelliana. George Orwell (1903-1950), escritor inglês, notabilizou-se com a obra Revolução dos Bichos, mas foi com 1984 que o autor descreveu com extrema competência a devassidão do privado, tendo como instrumento de controle a teletela, tema desse breve ensaio.


Devassidão do Privado e a perda da identidade humana

O narrador-personagem criado por Orwell – Winston Smith – é um membro da campanha da economia e responsável pela manipulação das notícias e dos acontecimentos históricos criados pelo Partido, que tem como mandatário máximo o onipotente e despersonalizado Grande Irmão (Big Brother). A narrativa se passa numa Londres sombria e miserável. O Partido tem quatro ministérios: o ministério da verdade (responsável pelas notícias, diversão, belas-artes e instrução); o ministério da paz, que se ocupa da guerra; o ministério do amor, que mantém a lei e a ordem; o ministério da fartura, responsável pelas atividades econômicas. Os lemas do Partido são: Guerra é Paz! Liberdade é Escravidão! Ignorância é Força! Orwell monta sua narrativa na perspectiva dos regimes totalitários que surgiram pouco antes da eclosão da segunda guerra mundial (1939-1945).

No departamento de registro Winston se encarrega de manipular fatos e deturpar informações, inventando notícias auspiciosas à população eufórica. O seqüestro da memória aparece na obra em sua totalidade, analisada por Winston como um direito que não lhe era mais garantido, expressando categoricamente a cultura do fragmento. Importante assinalar que Londres faz parte de uma potência denominada Oceania, permanentemente em conflito com a Eurásia e a Letásia, outras potências políticas da ficção. Ao se referir às superpotências Orwell preconiza as alianças políticas/econômicas dos dias de hoje, ou seja, blocos econômicos unidos pelo controle da mão-de-obra abundante e barata, além de elevada quantidade de matéria-prima em regiões onde impera regimes políticos corruptos e fragilizados pelas sucessivas guerras civis.
Winston trabalha na mesma seção de O’Brien, membro do partido interno; um ser bruto, rude, de pouca conversa na concepção de Winston. O grande inimigo do povo é Emmanuel Goldstein, repudiado todos os dias nos dois minutos de ódio, numa espécie de catarse coletiva. Goldstein é caracterizado fisicamente pelo autor como um homem magro e de procedência judaica, referências implícitas ao anti-semitismo hitlerista durante o regime nazista. As formulações teóricas de Goldstein estão inseridas num compêndio denominado ‘O Livro’, numa alusão às idéias do filósofo Karl Marx. A fraternidade representa um grupo de traidores do Partido e do Grande Irmão, igualmente execrada pelos membros do partido interno/externo. Para que nenhum membro do Partido cometa qualquer tipo de atentado contra o Grande Irmão existe a polícia do pensamento. Qualquer ato de subversão é classificado como crimidéia, passivo de execução pública através da forca.

Há ainda no desdobramento da ficção referências à criação de uma nova expressão lingüística (novilíngua), onde a contração das palavras e a supressão de outras possibilitaria a estruturação de uma linguagem minimalista e instrumental. Esta ‘profecia’ de Orwell pode ser associada nos dias de hoje à língua inglesa, que é tratada como língua universal em diversas áreas comerciais, mas principalmente no mundo da cibercultura. O Partido tem a clara preocupação de atrair as novas gerações para a sua proposta ideológica, reunidas na sigla INGSOC: novilíngua, duplipensar e a mutabilidade do passado. O duplipensar é um condicionamento social na maneira de reagir diante de determinados acontecimentos sociais, promovendo a dissociação espacial e temporal e, portanto, a anulação da memória. Diante da contradição do que é certo ou errado, real e imaginário, o Partido cria a falsa idéia de que a Oceania progride a passos largos numa evidente manipulação dos dados concretos daquela sociedade.

Todos os produtos comercializados ma Oceania tem a marca Vitória (seria uma alusão antecipatória à globalização?). Convivem com o racionamento, embora o ministério da fortuna anuncie, regularmente, produções recordes de gêneros alimentícios. A uniformidade do pensamento propagada pelo Partido atravessa todos os sentidos humanos. Este controle excessivo e autoritário causa uma impotência coletiva, eterna ansiedade, claustrofobia social generalizada. Crianças desde tenra idade são adestradas para se tornarem espiãs e delatoras – caso necessário – de seus próprios pais, como acontecia durante o período de formação da juventude hitlerista.

Nesta direção, Winston entende que somente a revolução a partir da prole – pessoas que não pertenciam ao Partido e que moravam em bairros fétidos e afastados do centro de Londres – poderia alterar a correlação de forças determinada pelo sistema de vigilância das teletelas. Porém, sistematicamente a prole era aterrorizada pelo ataque de bombas-foguete jogadas pela polícia do pensamento, assassinatos em massa que nunca constavam nas estatísticas oficiais. Os ‘proles’ por adorarem o jogo, a loteria, compreendiam o mundo à sua volta de maneira intuitiva; revoltavam-se, mas não conseguiam se organizar politicamente, razão pela qual eram explorados e expurgados facilmente, conforme palavras do narrador-personagem.
Todavia, a busca de uma memória que se perdeu entre as ranhuras do passado histórico vale à Winston a traição de O’Brien, que através da polícia do pensamento tortura-o até à exaustão. Winston é transformado numa não-pessoa, assim como Júlia, sua amante e cúmplice. Ao trair o que lhe era mais precioso – o amor de Júlia – Winston, despersonalizado e autômato, passa a venerar o Grande Irmão.

Orwell nos brindou com metáforas subjacentes aos regimes totalitários (tanto de esquerda como de direita), ma que podem ser profundamente associadas aos dias de hoje. Na era da globalização e de regimes políticos neoliberais, grandes conglomerados midiáticos ditam o que precisa ser ‘lembrado’ e o que precisa ser ‘esquecido’. A cultura do fragmento tem aí o seu viés antidemocrático e imobilizador. O controle da informação e os monopólios da mídia são ameaças à organização coletiva, unidas que estão na desqualificação permanente das falas discordantes ou dos discursos dissonantes. Pensando bem 1984 deixou de ser uma metáfora!


REFERÊNCIAS


BERTONHA, João Fábio; MOSCATELLI, Renato. A revolução dos bichos como instrumento para estudo do estalinismo e da Revolução russa. Jornal Bolando aula de História. Abr. 2000.

ORWELL, George. 1984. Trad por: Wilson Velloso. 12 ed. São Paulo: Editora Nacional, 1979.