A formação do Estado brasileiro é atravessada por processos
históricos de cunho autoritário, excludente e de massacres sistemáticos. No
período monárquico (1822-1889) as tentativas frustradas de se constituir uma
‘nação’ pela força e pela contratação de milícias internacionais representaram
a tônica da presença estatal neste marco temporal. As rebeliões de viés
separatista nas décadas de 30 e 40 do século XIX eram sintomáticas. O modelo
produtivo calcado na força de trabalho escravista e na extração predatória dos
recursos naturais espalhava miséria e destruição nos nichos oligárquicos
desprestigiados pela monarquia. As regiões norte e nordeste viam crescer motins
organizados por escravizados islamizados e proprietários rurais falidos. Tal
permanência do modelo agroexportador escravocrata adentraria o século XX, já no
período republicano, com as mesmas mazelas não resolvidas do período
monárquico.
O Estado republicano, ‘inaugurado’ em 1889, e sem qualquer
participação popular, teve pequenos intervalos democráticos. A oligarquia
cafeicultora paulista, ao assumir em regime de revezamento com Minas Gerais, o
poder executivo nacional, instaurou a “República do Café com Leite” (1898-1930),
estabelecendo os pilares de como o país seria governado: agroexportação (café)
e exploração incessante de uma força de trabalho agrária em condições de
semiescravidão. O período varguista
(1930-1945), marcado pela ditadura do Estado
Novo, intervencionismo nos estados federativos e censura aos meios de
comunicação, também foi responsável pela eliminação física de milhares de
brasileiros à custa dos 'interesses da pátria'. Outro exemplo significativo foi
a expulsão de pequenos artesãos, mendicantes e prostitutas dos centros da
cidade do Rio de Janeiro em 1904 (Revolta da Vacina), então capital da
República, pelo prefeito-engenheiro Pereira Passos, desejoso de uma
sanitarização social.
Reconhecer os massacres do Estado e a ausência de um
projeto social para o Brasil já seriam suficientemente notáveis para se
compreender as omissões nos setores estratégicos deste país (educação,
mobilidade urbana, saúde e infraestrutura). Contudo, a Ditadura Militar
(1964-1985) deixou marcas indeléveis em muitas gerações de brasileiros:
desaparecimento de presos políticos; torturas; tática da suspeição; fechamento
da imprensa livre; mordaça na classe artística; exílios compulsórios; e
destruição do modelo educacional em todos os níveis de ensino.
Em nosso país, com interrupções históricas de menor
significado, temos vivido sob um presidencialismo rígido, quando não sob o
regime autocrático, conforme palavras do jurista Sampaio Dória (1883-1964): ‘O
Chefe de Estado ou é rei hereditário e perpétuo, cuja vontade decreta e executa
as leis, ou é um caudilho que, usurpando ao povo a soberania, decreta como
poder pessoal as leis que executa ou manda executar. Os governados estão
paralisados e sem voz, sob o jugo da não-partilha do déspota, coroado ou sem
coroa’.
Somado a isso, os mass
media têm tentado reorganizar a agenda histórica das manifestações
sociais no Brasil de uma maneira extremamente capciosa e anti-histórica, como
presenciamos atualmente com os levantes populares contra o aumento das tarifas
dos transportes coletivos.
Nesta direção, pensar a ‘violência de Estado’ num país como
o Brasil é compreender os limites de uma democracia liberal legalista,
conduzida por tecnocratas e por poderes constituídos bastante afastados dos
interesses coletivos; o Congresso Nacional representa tão somente a defesa dos
interesses do capital contra o trabalho. A política do consenso pela força durante o
regime militar foi substituída pela política do consenso legalista (a saída para os problemas sociais é de
ordem técnica e não de ordem política).
A ilusão conformista
que circunda o mundo do trabalho e também os espaços de subjetividade ganham
contornos cada vez mais complexificados e reacionários. Repensar a sociedade de
classes, em parâmetros humanizantes, exige mais do que reformismos pontuais,
como defendiam os utopistas dos séculos XVII, XVIII e XIX. Enfim, onde os
fenômenos sociais estejam presentes, importa-nos problematizar e qualificar a
compreensão da realidade existente e, consequentemente, trabalhar na direção de
transformá-la!
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