terça-feira, 15 de julho de 2008

TOCA RAUL!





Por Jéferson Dantas

Não há roda de violão ou espetáculo musical que não se ouça a indefectível frase: Toca Raul! Raul Santos Seixas (1945-1989), baiano de Salvador, completaria 63 anos no dia 28 de junho. Um dos mais criativos e irreverentes compositores do rock nacional deixou-nos um legado que promete embalar ainda novas gerações com suas frases de efeito, a partir de um repertório musical eclético e declaradamente subversivo.

Quando os movimentos contraculturais ganhavam as ruas de todas as partes do mundo, Raul Seixas iniciava sua carreira artística em Salvador, já influenciada pelo rock e pelo baião de Luiz Gonzaga, notadamente no final da década de 1950 e início da década de 1960. Gozando de uma vida material relativamente confortável, - já que seu pai era chefe de telecomunicações da Viação Férrea Federal da Bahia e sua mãe uma típica dona de casa - Seixas desde cedo tomou gosto pela literatura, inventando histórias fantásticas para o seu único irmão, Plínio Seixas. O menino que queria ser tão importante quanto Jorge Amado encontrava o seu caminho na linguagem musical, entendendo que suas produções textuais conseguiriam atingir um público muito maior através da música do que propriamente pela literatura.

O contexto da época apontava as canções de protesto e a bossa nova como estilos divergentes e revolucionários no interior da MPB (Música Popular Brasileira), assim como as primeiras experiências sonoras eletrônicas dos tropicalistas e da Jovem Guarda. Os ditos puristas, fiéis ao estilo musical dos cancioneiros regionais, vociferavam contra o que entendiam ser a invasão imperialista na elaboração dos arranjos musicais, principalmente o uso da guitarra elétrica. O debate se estendia entre a linha musical politizada e engajada e a linha mais alienada, influenciada pela sub-cultura do rock. No entanto, segundo análise do professor João Pinto Furtado, a grande mediadora deste debate foi sem dúvida a Indústria Fonográfica, síntese de um dos setores da Indústria Cultural. Mesmo os músicos considerados críticos da pasteurização da cultura, passaram a freqüentar o circuito de produção da Indústria Cultural, já que suas canções tornaram-se sucesso de vendas. Com Raul Seixas não foi diferente. Mesmo a sua irreverência, com doses de insubordinação ou subversão, foi digerida pelo grande público.

A conjuntura do milagre econômico durante o período mais repressor da Ditadura Militar (1969-1974) criava uma falsa euforia na classe média nacional, que passou a adquirir mais e mais bens de consumo, notadamente eletrodomésticos. Os televisores em cores tornaram-se a grande coqueluche da classe média, reforçada pelo espírito integrador da teledramaturgia, do telejornal e das exibições ao vivo do futebol nacional e/ou internacional. Tendo isto em vista, a Indústria Fonográfica encontrava diversos caminhos para divulgar novos artistas ou novas tendências musicais, já que as trilhas sonoras das telenovelas reforçavam dia após dia a mesma cantinela, fazendo com que o espectador absorvesse as canções quase que de maneira osmótica.

No contexto internacional, o inconformismo da juventude se elevava, principalmente com a invasão do Vietnã pelos EUA num dos episódios mais tensos da guerra fria (1948-1989). Segundo o pesquisador José Ramos Tinhorão foi com a criação da categoria juventude que a Indústria Cultural passou a elaborar novos bens de consumo, principalmente com a invasão do rock’n’roll, emblema de uma referência musical particular do inconformismo juvenil. Entretanto, no Brasil, principalmente com a chegada dos generais-presidentes ao Poder Executivo, o rock’n’roll não era visto com bons olhos, dado o seu caráter transgressor, subversivo e fomentador de rebeldias.

E foi justamente com esta compreensão de que o rock poderia fomentar mais do que uma sensação corporal desprovida de consciência política, que a Indústria Cultural foi buscar com extrema maestria a figura de Roberto Carlos como ídolo da juventude brasileira. Roberto Carlos personificava o estereótipo fabricado pela Indústria Fonográfica, ocupando as tardes de domingo com o programa intitulado Jovem Guarda na TV Record de São Paulo, um ano depois da implantação do regime militar. O programa mobiliza e cria novos estilos lingüísticos (gírias), além de bens de consumo relacionados aos instrumentos musicais, roupas (blue-jeans, casacão de couro), alavancando direta e indiretamente outros bens de consumo associados àquele horário comercial de exibição do programa. Mas, o que importava aos generais do Palácio do Planalto era a liderança alienada de Roberto Carlos e os seus reflexos sobre a juventude brasileira. O próprio rei do iê-iê-iê nacional teria declarado ao Jornal Última Hora de São Paulo, em 1970, que sua postura ideológica era nitidamente de direita, embora nunca tenha gostado “falar de política”.

Neste sentido, os primeiros anos da década de 1970, apesar de terem alçado Raul Seixas à fama, ao conhecimento do grande público, também o levaram a um exílio forçado nos EUA pela Ditadura Militar, principalmente por causa da tão propalada Sociedade Alternativa. Nos shows que realizava para divulgar o disco Krig Ha Bandolo (1973), pela gravadora multinacional Philips, eram distribuídos gibis - manifesto com as diretrizes filosóficas da Sociedade Alternativa. Para a Polícia Federal, estes gibis eram materiais subversivos. Seixas chegou a ser espancado – vendado e completamente despido - no aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, para divulgar a lista dos principais envolvidos no movimento. Assim, em 1974, Raul Seixas foi para os EUA, acompanhado do seu parceiro musical, Paulo Coelho, e de suas respectivas esposas, Edith e Adalgisa. O exílio durou pouco. No mesmo ano, devido ao sucesso do Long Play Gita, Seixas retornou ao Brasil e gravou o primeiro clipe colorido da tevê brasileira, na emissora carioca Rede Globo. A tática da produção da suspeita, da qual Seixas foi vítima, era um dos mecanismos utilizados pela Ditadura para manter a sociedade civil amordaçada, principalmente os músicos e/ou artistas mais engajados.

Se as décadas de 1960 e 1970, principalmente, foram marcadas pela repressão, violação dos direitos individuais, censura à imprensa, torturas, ainda assim, no imaginário coletivo dos movimentos sociais mais identificados com a esquerda e com o retorno da legalidade política, era possível indicar claramente o principal inimigo a ser derrotado: a Ditadura e todos os seus acólitos. Esta era a principal utopia coletiva da sociedade brasileira engajada politicamente. A década de 1980 trouxe consigo o processo de redemocratização do país, anistia política e eleições diretas para prefeitos e governadores. Porém, o conservadorismo político-partidário parlamentar profundamente associado ao regime militar, evitaria a eleição direta para presidente em 1984, com o golpe do Colégio Eleitoral. Para Raul Seixas, a década de 1980 é o início do desencanto e também o momento histórico em que a sua saúde torna-se cada vez mais debilitada.

Seixas alternava períodos de sucesso e de ostracismo. Em 1980 lança um LP pela CBS – hoje Sony Music -, criticando os últimos anos do regime militar e o endividamento externo cada vez mais crescente através dos empréstimos internacionais. Rescinde contrato com a gravadora em 1981 por lhe pedirem que fizesse uma homenagem à Lady Diana. Em 1983 volta à cena num programa infantil da TV Globo (Plunct-Plact-Zumm) cantando Carimbador Maluco, onde ironiza a tecnoburocracia do regime militar com expressões retiradas de um livro de Pierre Proudhon. Lança um LP em 1984 pela gravadora Som Livre, das Organizações Globo, devido ao sucesso de Carimbador Maluco. Internações e uma pancreatite crônica afastam Raul Seixas dos palcos e dos holofotes da mídia. Somente em 1986 volta a gravar pelo selo da gravadora Copacabana num contrato de dois anos. Seu disco derradeiro foi realizado em 1989 pela gravadora WEA/Warner Bros, tendo como parceiro musical Marcelo Nova, um antigo fã e líder da banda de rock Camisa de Vênus.

O último LP de Raul Seixas sintetiza um total desencanto pela vida, por isso, o mais biográfico de todos. Representou a crônica de uma morte anunciada. Bastante debilitado e aplicando-se insulina regularmente, a emissão vocal titubeante de Seixas em nada lembrava o músico irreverente da década de 1970. Os temas principais deste disco foram os xiitas ecologicamente corretos, sintetizados no cantor inglês Sting, que esteve no Brasil posando de defensor da causa verde, reflexo do fenômeno arrivista que se agudizaria na década de 1990. Ainda sobram ironias para os livros mais vendidos do momento – os denominados best-sellers - com temáticas simplórias e repletas de receitas de auto-ajuda. As demais canções revelam momentos da vida do músico, enfim, um inventário de sua produção artística, entremeados com situações vivenciadas nos seus relacionamentos conjugais e/ou afetivos.

Assim, levando-se em conta o que enuncia o historiador Carlos Zacarias F. de Sena Jr, os sujeitos históricos apresentam suas singularidades e mecanismos próprios de compreensão de sua realidade social, e esta compreensão é sempre dialética, historicizada. No conjunto da obra musical de Raul Seixas há uma leitura muito específica do que se passava no Brasil e no mundo, sem perder a coerência e o próprio movimento histórico representado pelo período ditatorial e a redemocratização no país. As novas gerações continuam prestigiando Raul Seixas e suas canções permanecem sendo revisitadas por grupos musicais da atualidade, denotando a proeminência e/ou vigor de sua obra.

PARA SABER MAIS


DANTAS, Jéferson Silveira. História, Música e Ensino: as canções de Raul Seixas em sala de aula (1967-1989). Florianópolis, 1998, 110 f. Trabalho de conclusão de Curso (Bacharelado e Licenciatura em História) - Universidade Federal de Santa Catarina.

FURTADO, João Pinto. A música popular brasileira dos anos 60 aos 90. Apontamentos para o estudo das Relações entre Linguagens e Práticas Sociais. Pós-História, Assis, SP, v. 5, 1997.

MORAES, José Geraldo Vinci de. História e Música: canção popular e conhecimento histórico. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20, n. 39, p. 203-221, 2000.

NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 103-126, 2004.

SEIXAS, Raul. O Baú do Raul. 16 ed. São Paulo: Globo, 1992.

SENA Jr. Carlos Zacarias F. de. A dialética em questão: considerações teórico-metodológicas sobre a historiografia contemporânea. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 48, p. 39-72, 2004.

TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998.


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